Após emenda de vereador ser aprovada, rua em Santo Amaro, em SP, é autorizada a ir para leilão; moradores não foram avisados


A rua América Central foi alvo de emenda do vereador Marcelo Messias (MDB), que autorizou o leilão da rua onde fica a empresa farmacêutica Apsen.
Montagem/g1/Rodrigo Rodrigues e Lucas Bassi/Rede Câmara
Moradores da Rua América Central, em Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, se dizem surpresos e preocupados com uma emenda aprovada na Câmara Municipal na última quarta-feira (3) que autoriza a prefeitura a leiloar a via para a iniciativa privada, caso o projeto seja sancionado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB).
O vereador Marcelo Messias (MDB) incluiu em um projeto de lei da prefeitura uma emenda que autoriza a gestão municipal a negociar a venda do trecho de cerca de 250 metros da via, que inclui uma viela adjacente sem nome que tem sete imóveis residenciais. O projeto foi aprovado com oito emendas por 29 votos a favor e 11, contrários. Os moradores afirmam não ter sido consultados.
A emenda do vereador se refere ao trecho entre as ruas La Paz e Ada Negri, inclusive a viela adjacente e sem nome, e 80% deste trecho da rua é ocupado por prédios e galpões da empresa farmacêutica Apsen.
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No total, além dos prédios da farmacêutica, a Rua América Central – que teve autorização da Câmara Municipal para ser negociada – tem cerca de outros dez imóveis de propriedade particular. Um deles é uma microempresa de produtos eletromecânicos que tem 18 funcionários e, em 2026, vai completar 30 anos de atuação na rua.
O dono da empresa e do imóvel, Joel Moraes, não sabia da autorização para que a rua fosse leiloada e se disse surpreso com a notícia dada a ele pelo g1.
“Estou sabendo agora por você e estou muito surpreso”, disse ele.
“Nunca fomos procurados por nenhum vereador para falar sobre o assunto. Eu nem sabia que podia vender uma rua em São Paulo… Como é esse processo, você sabe? Vou ter o direito de ir e vir se uma empresa cobrar a rua? Ela vai ser fechada pela empresa? Para quem vou pagar o IPTU?”, questionou o empresário.
Emenda do vereador Marcelo Messias que autorizou o leilão da rua América Central, inclusive a viela residencial adjacente.
Reprodução/Câmara Municipal
Na viela aos fundos da fábrica da Apsen, existem sete casas. Duas delas, a empresa já comprou. Nas outras cinco, moram famílias que se disseram “apavoradas” com a possibilidade de terem de deixar seus imóveis por conta do repasse da rua.
Uma delas é Antonieta Cruz, de 65 anos. Mãe de um filho com transtorno do espectro autista de 47 anos, ela vive com o marido e o filho na casa há mais de 35 anos.
“Nós vimos na reportagem da Globo nosso endereço. Fiquei chateada e muito preocupada. Mas a gente não sabe nem quem a gente pode procurar. A gente vai ter que deixar nossa casa? Eu não tenho interesse de sair daqui”, disse ela.
Outro comerciante do local que se disse surpreso com a notícia da emenda é o empresário Ivan Nazarenko, dono de uma empresa de instrumentos cirúrgicos na mesma América Central. Ele também soube da emenda do vereador Messias pela imprensa.
“Não entendi como a prefeitura pode vender meu endereço. Qual o significado exato dessa venda, e no que isso implica? Colocarão cancelas de acesso? Mudarão o nome? Como ficará o acesso de serviços públicos como coleta de lixo quando a rua virar propriedade privada? Como ficará o acesso de meus fornecedores e clientes? Estou meio perdido com isso”, escreveu.
Nem a Prefeitura de São Paulo tem as respostas para as perguntas feitas pelos moradores da rua. Porque o projeto de lei 673/2025, que foi aprovado na quarta-feira (3) na Câmara, tinha como objetivo a entrega para a iniciativa privada de apenas uma viela nos Jardins que não é mais habitada.
A Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior teve todas as casas compradas e demolidas por uma construtora, que agora vai erguer um condomínio de luxo no local. Não há mais moradores ou comerciantes naquele local. A travessa deve ser negociada pelo preço mínimo de R$ 16 milhões.
Em meio ao trâmite do projeto na Câmara, os vereadores incluíram oito emendas diferentes, concedendo ou autorizando o leilão e o repasse de outras áreas da cidade, sem nenhuma justificativa técnica nem consulta pública aos interessados registrada na Casa.
Dona Antonieta Cruz, de 65 anos, vive na viela adjacente da rua América Central há 35 anos e não quer mudar ou vender seu imóvel.
Rodrigo Rodrigues/g1
Uma dessas emendas é justamente a do vereador Marcelo Messias que autorizou o leilão da rua de Santo Amaro. O g1 procurou o vereador e sua assessoria de imprensa, mas não recebeu resposta até a última atualização desta reportagem.
A Prefeitura de São Paulo, por meio de nota, disse que o prefeito Ricardo Nunes tem 15 dias úteis para sancionar ou vetar o Projeto de Lei 673/2025 e que, nesse período, “diferentes secretarias e áreas técnicas analisam o conteúdo e apresentam subsídios para a decisão”.
“Somente depois dessas etapas e da publicação da lei é que começam as análises de viabilidade técnica e jurídica dos pedidos específicos, sejam eles de alienação ou de concessão”, afirmou.
Em nota, a farmacêutica Apsen informou que “está acompanhando o processo e esclarece que aguarda a sanção do Prefeito do Município de São Paulo, Ricardo Nunes, para que se posicione. A Apsen reafirma seu compromisso em contribuir de forma construtiva com a sociedade e com a comunidade em que atua”.
O empresário Joel Moraes e o filho, Joel Júnior, souberam da autorização para leilão da rua através do g1. Eles têm uma empresa na rua América Central há quase 30 anos.
Rodrigo Rodrigues/g1
Na Rua América Central, os moradores que são alvos da emenda de Marcelo Messias criticaram o vereador e pediram veto do prefeito ao projeto.
“Acho um absurdo o que foi feito. A primeira coisa que ele [vereador Messias] deveria ter feito, os seus assessores, é uma pesquisa aqui antes. Só pode estar atendendo algum interesse [que não é público]. Espero que o prefeito seja coerente e não sancione isso, porque que é um absurdo”, disse o empresário Joel Moraes.
“Nunca me passou na cabeça vender a casa. Porque aqui é a maior paz para cuidar do meu filho e do meu marido. Estou bem chateada e preocupada. Quero pedir para eles não aprovarem isso, para não tirar o sossego da gente. Peço para que eles não levem isso adiante e deixem a gente em paz”, afirmou Antonieta Cruz.
Casas e viela adjacente à Rua América Central, em Santo Amaro, alvo de emenda do vereador Marcelo Messias (MDB).
Rodrigo Rodrigues/g1
Expansão
O pano de fundo dessa história é a especulação imobiliária que atinge a cidade.
Por conta do crescimento da Apsen no bairro, aos poucos a empresa foi comprando os imóveis vizinhos e expandindo seus prédios na vizinhança das ruas La Paz e América Central.
Só que esse plano de expansão esbarrou na vontade dos moradores e comerciantes de se manter nos imóveis em que vivem ou trabalham há décadas, conforme eles mesmo contaram ao g1.
“A Apsen nos procurou duas vezes nos últimos três ou quatro anos. Numa delas, ofereceu um valor pelo nosso imóvel, muito abaixo do mercado, e não nos interessou sair daqui. A outra foi para trocar o nome da rua para um dirigente fundador da empresa deles. A gente concordou, desde que eles cobrissem os nossos custos de mudança do material gráfico com novo endereço. Mas não sei se essa história de troca de nome evoluiu ou não”, afirmou o empresário Joel Moraes.
O filho dele, Joel Júnior, que ajuda o pai a tocar a empresa de produtos eletrônicos, diz que não tem problemas em negociar o imóvel da empresa, caso seja procurado pela farmacêutica. Porém, ele fala que é preciso oferecer um preço justo, para cobrir as despesas de mudança.
A farmacêutica Aspen tem 80% dos prédios da Rua América Central e tem interesse na compra dos demais imóveis da via
Rodrigo Rodrigues/g1
“Não é só o preço do imóvel que a gente precisa negociar. A nossa empresa tem uma característica muito particular, porque as máquinas daqui foram adaptadas sob medida para o espaço atual. Devido ao alto consumo de energia da nossa atividade, a gente também teve que negociar com a Enel um transformador de energia no poste da rua só para a gente”, explicou o empresário.
“A saída daqui envolve uma logística complexa, que a gente precisa embutir nessa negociação. Tem toda uma infraestrutura nossa aqui que precisa ser adaptada para sairmos. É preciso negociar um valor compatível, para construir outra planta em outro lugar”, afirmou.
Na viela mora também dona Eva, que tem um imóvel de cerca de 150 metros quadrados, com um grande jardim. Ela comprou a casa, décadas atrás, com a ajuda da mãe e dos irmãos, trabalhando duramente como secretária por quase 40 anos.
“Eu pensei que ia terminar os meus dias aqui. Mas estou preocupada com essa história de venderem a rua…”, disse ela.
Na conversa no portão da casa, o genro dela, Fernando, contou que também foi procurado pela Apsen para vender o imóvel, mas não também não houve interesse.
“Essa casa aqui tem uma característica que você não vê mais aqui em Santo Amaro. É uma casa grande, com quintal e jardim, onde minha sogra criou os filhos e agora os netos vêm se divertir. Com o dinheiro que eles nos ofereceram, a gente não consegue comprar nada parecido em São Paulo”, disse ele.
“Eu vejo essa ideia de vender a rua como uma forma de nos aprisionar aqui e forçar a gente a vender a casa a preço de banana”, afirmou.
A opinião é compartilhada pelo empresário Ivan Nazarenko: “O leilão dessa rua tem cliente certo, que é a Apsen. Não faz muito sentido dizer ‘leilão’ abstraindo quem é o comprador óbvio. É absolutamente óbvio que isso foi, de alguma forma, articulado pela Apsen. Nossa rua tem uso, não é inútil. Tem a gente, a Eletroero, o pessoal da viela”.
O que dizem especialistas
O professor da FGV, Marco Antonio Teixeira, e a doutora em Direito Bianca Tavolari, pesquisadora do Cebrap/USP.
Reprodução/Instagram
O cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, professor do curso de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), destacou a importância do debate sobre a decisão dos vereadores.
“O papel dos vereadores foi bastante corporativo ao desconsiderar o interesse dos moradores e de quem lá na rua já está, já mora há muito tempo e terá suas vidas completamente modificadas. Eles [parlamentares] viraram representantes da empresa. E este é um debate muito importante para a cidade porque, por mais que haja interesses corporativos, é preciso considerar o interesse coletivo. Faltou esse espírito público aos parlamentares”, afirmou.
A doutora em direito Bianca Tavolari, coordenadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap-USP) e professora da FGV Direito, diz que a Câmara tem incluído “privatizações ou potenciais privatizações de ruas por emendas, sem a necessária discussão com a população sobre o interesse público”.
“É muito preocupante, porque isso já foi visto nas revisões de Plano Diretor, em que boa parte foi de emendas de vereadores que atendem a interesses exclusivos do mercado imobiliário. E é muito difícil sustentar que há interesse público”, ressalta.
E finaliza: “Uma situação sem transparência e sem que a gente possa, de fato, ter uma percepção pública de qual é o interesse desses vereadores”.
Quem é o vereador Marcelo Messias
O vereador Marcelo Messias, do MDB, está no 2° mandato dele na Câmara Municipal de São Paulo.
Lucas Bassi/Rede Câmara
Cirurgião dentista, Marcelo Messias é vereador em São Paulo desde 2021, quando foi eleito com pouco mais de 23 mil votos. Ele está no 2° mandato na Câmara Municipal e foi reeleito em 2024 com 40.079 votos.
Fiel ao prefeito Ricardo Nunes, ele é considerado o substituto do prefeito nas associações comerciais de empresários regionais na Zona Sul de São Paulo, onde Nunes atuava antes de se tornar vice-prefeito e, depois, prefeito reeleito de São Paulo.
Na Câmara Municipal, o vereador do MDB faz parte da Corregedoria da Casa – que julga processos de quebra de decorro pelos parlamentares – além de ter sido indicado recentemente para a CPI que começou a investigar as fraudes das construtoras na construção de habitações de interesse social na cidade.
O parlamentar também é membro de duas comissões permanentes do Poder Legislativo: a Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Cidadania e a Subcomissão do Plano Municipal de Cultura da Comissão de Finanças e Orçamento.

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