Irmãos Ana Helena Ulbrich e Henrique Dias criaram sistema de inteligência artificial que ajuda farmacêuticos em hospitais
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No começo deste mês, a influente revista americana Time produziu sua primeira lista das cem pessoas mais influentes no mundo da inteligência artificial (IA).
Muitos dos nomes na lista são bastante conhecidos no mundo da tecnologia: Elon Musk (da Tesla e da xAI), Sam Altman (da OpenAI, criadora do ChatGPT), Mark Zuckerberg (da Meta), Jenson Huang (da Nvidia) e Liang Wenfeng (do Deepseek), entre outros.
Na lista também aparece o brasileiro Cristiano Amon, CEO da Qualcomm, empresa americana fabricante de chips que vem se destacando também por pesquisa no campo da AI.
A lista é repleta de empresários e executivos que estão moldando esse campo que é hoje visto como o futuro da indústria da tecnologia.
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A inteligência artificial é considerada uma ferramenta poderosa para ajudar a resolver diversos problemas crônicos da humanidade.
E é vista também como uma tremenda oportunidade de negócios para aqueles visionários que conseguirem criar empresas pioneiras e disruptivas.
A inteligência artificial catapultou a fabricante de chips Nvidia ao posto de empresa mais valiosa do mundo hoje, com valor de mercado superior a US$ 4 trilhões. Outro pioneiro no setor, o fundador da OpenAI, Sam Altman, tornou-se bilionário.
Outro nome que aparece na lista é da farmacêutica brasileira Ana Helena Ulbrich, moradora de Capão da Canoa, município do litoral norte do Rio Grande do Sul, que foi reconhecida pela Time pela ferramenta que ela e seu irmão, o cientista de dados Henrique Dias, criaram para resolver um problema do sistema de saúde brasileiro: reduzir o número de erros em prescrições médicas.
Mas ao contrário de alguns outros nomes da lista e no setor de AI, Ulbrich e Dias não se tornaram bilionários — ou sequer milionários.
Ao invés de uma startup, eles criaram um instituto sem fins lucrativos, a NoHarm, que cobra uma pequena taxa de hospitais privados para poder oferecer sua ferramenta gratuitamente aos hospitais públicos do Brasil.
Sua pequena operação de 20 pessoas funciona ainda hoje dentro da Tecnopuc Startup — a incubadora de negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre.
“O caminho comum é criar uma empresa para ficar milionário. Nós nunca quisemos ser milionários. Não tínhamos essa necessidade ou essa vontade”, disse Ulbrich em entrevista à BBC News Brasil.
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Trabalho exaustivo
Em 2017, Ana Helena Ulbrich era farmacêutica do Grupo Hospitalar Conceição, a maior rede pública de hospitais da região Sul do país, com atendimento 100% pelo SUS.
Sua função era fazer a avaliação da prescrição de remédios receitados aos pacientes.
Quando um médico precisa administrar remédios a pacientes internados no hospital, ele envia a prescrição ao farmacêutico, que é um profissional especializado em analisar se os medicamentos são eficazes e seguros.
Há inúmeros problemas que podem acontecer na administração de um remédio: por exemplo, a dose e a frequência podem estar erradas ou pode haver interações indesejadas do remédio indicado com outros medicamentos que o paciente já está tomando.
Alguns pacientes são idosos, possuem comorbidades ou têm problemas específicos, como renais ou hepáticos — fatores que podem ser complicados com erros de prescrições.
Em um mundo ideal, um farmacêutico precisaria olhar todo o prontuário do paciente — incluindo as anotações dos médicos e enfermeiros e os exames do paciente.
Mas a prática do departamento de farmácia de um grande hospital brasileiro é muito diferente.
“O trabalho de olhar prescrições era exaustivo. Eu tinha um minuto ou dois minutos para olhar a prescrição e já liberar o medicamento”, conta Ulbrich.
Na equipe em que ela trabalhava, com quatro pessoas, eles chegavam a avaliar 800 prescrições por dia.
“Eu sempre me senti insegura se eu estava ou não olhando a prescrição de forma completa e com qualidade”, conta.
“A maior parte dos farmacêuticos não têm condições de olhar todas as informações no formato em que o trabalho está hoje.”
Farmacêuticos costumam ter poucos minutos para avaliar se prescrições médicas são seguras
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Nos almoços familiares de domingo, ela discutiu o problema com seu irmão, Henrique Dias, que estava fazendo doutorado em informática na PUC-RS.
As conversas resultaram em um projeto de pesquisa para detecção de eventos adversos em prontuários de hospitais.
E desse projeto surgiu o algoritmo que serviu como embrião do trabalho que eles desenvolvem até hoje. O algoritmo detecta prescrições de medicamentos fora do padrão e alerta farmacêuticos para erros.
O trabalho foi publicado em uma revista científica, mas Ulbrich e Dias tinham ambições maiores: eles queriam desenvolver uma solução que facilitasse a vida de farmacêuticos nos hospitais.
Em 2019, eles montaram um instituto sem fins-lucrativos chamado NoHarm — nome em inglês que significa “sem danos”, contando com um dinheiro que ganharam do prêmio Lara, da gigante de tecnologia do Google.
O trabalho começou no Hospital Santa Casa de Porto Alegre e envolveu não só o desenvolvimento do algoritmo, como também um sistema integrado ao banco de dados.
A primeira prescrição médica da NoHarm foi analisada em março de 2020.
O programa da NoHarm oferece soluções para diversos problemas comuns aos farmacêuticos. O sistema tem acesso a todas as informações do prontuário do paciente, como exames e comorbidades.
O programa consegue identificar problemas de dose e frequência de medicamentos, analisa as interações com outros remédios que o paciente esteja tomando e consegue até mesmo analisar as anotações feitas por profissionais como médicos, enfermeiros, nutricionistas e fisioterapeutas.
A NoHarm sugere planos de ação aos farmacêuticos sobre como lidar com eventuais problemas que surgem com a prescrição.
NoHarm ajuda farmacêuticos a tomarem decisões, mas não substitui o trabalho dos profissionais
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Ulbrich ressalta que a NoHarm não substitui um farmacêutico. É sempre importante haver um olhar humano e treinado para tomada de decisões. Mas a ferramenta auxilia os profissionais a lidar com a quantidade enorme de informações que é necessária para analisar com qualidade uma prescrição médica.
“A NoHarm é para suporte à decisão. Nós entendemos que a inteligência artificial, de forma ética, tem que ser assim. É uma forma de agilizar o processo de avaliação, e não de fazer o papel do profissional. Porque é muito arriscado botar no lugar do profissional uma ferramenta que faz tudo automaticamente.”
A realização do sonho de levar esse projeto adiante exigiu muito de ambos. Ulbrich e Dias seguiram com seus empregos — se dedicando apenas parcialmente ao projeto.
A farmacêutica ainda precisou conciliar o desenvolvimento da NoHarm com o trabalho intenso no hospital nos meses da pandemia — e com sua rotina familiar, como mãe de dois filhos.
100% gratuito ao SUS
A experiência na Santa Casa de Porto Alegre foi um sucesso. Ao usar a ferramenta da NoHarm, o hospital conseguiu — com a mesma equipe — aumentar em quatro vezes a quantidade de prescrições analisadas.
Sem nenhuma verba para marketing, a ideia foi sendo difundida em conferências de hospitais da qual Ulbrich participou.
A NoHarm hoje é usada por 200 hospitais no Brasil. Pelo seu sistema, passam mais de 5 milhões de prescrições por mês. A NoHarm afirma que mais de 2,5 milhões de pacientes foram beneficiados pelo sistema.
O instituto segue aperfeiçoando o sistema com mais pesquisas.
Em 2023, Ulbrich e Dias passaram a se dedicar integralmente à NoHarm. Tudo que a associação arrecada é usado para pagar salários e custos, e para reinvestir na sua tecnologia.
A NoHarm segue captando recursos de editais de fundações privadas ou bancos como BNDES. Parte de sua receita vem de hospitais privados, que pagam para usar o sistema.
Já hospitais do SUS têm acesso ao sistema de forma 100% gratuita.
A gratuidade da ferramenta aos hospitais públicos brasileiros sempre foi um dos pontos fundamentais do projeto de Ulbrich e Dias.
E é um dos motivos pelos quais eles montaram um instituto sem fins lucrativos, em vez de uma startup convencional.
Os irmãos chegaram a conversar com investidores privados quando montaram a NoHarm — quando ainda estudavam como seria seu modelo de negócios.
“Nós tivemos experiências ruins em relação a investidores. Antes de eles decidirem se investiriam, tivemos uma reunião e a conversa foi péssima. Nosso propósito era entregar a ferramenta gratuitamente ao SUS e isso não é interessante para nenhum investidor”, conta Ulbrich.
Outro ponto importante para os irmãos é que a ferramenta que eles desenvolverem é oferecida com código aberto — para que outras pessoas possam criar outras plataformas semelhantes.
“O investidor está orientado para o lucro. E não tem nada de errado nisso. Mas nós não estamos orientados para o lucro. É preciso ter um ‘fit’ com o investidor. Se não tiver, não faz sentido. Nós não íamos sair do nosso emprego para criar um negócio que não nos faz bem.”
Ulbrich diz que a decisão de não receber aportes de investidores — que acabariam pressionando a startup para dar retornos financeiros — permitiu que a NoHarm crescesse organicamente no ritmo estabelecido pelos seus próprios criadores.
O dinheiro obtido com prêmios e editais — que inclui fontes como o Google e a Amazon — deu a eles um grau de independência para seguirem seus próprios rumos — e eles não se arrependem dessa decisão.
“Nós temos muito orgulho de ter decidido isso. Só se comprovou que a nossa decisão foi a melhor. Temos parceiros que apoiam e divulgam a NoHarm por causa dessa decisão. Eles veem que nós temos o propósito de melhorar o sistema de saúde, não o propósito do lucro.”
Um dos editais que a NoHarm venceu foi para receber recursos da Fundação Gates, dos bilionários Bill e Melinda Gates.
Ulbrich acredita que essa distinção internacional contribuiu para que seu nome aparecesse na lista da Time de 100 pessoas mais influentes no mundo da inteligência artificial publicada neste mês.
A inclusão da NoHarm na lista da Time trouxe ainda mais trabalho para Ulbrich.
“Agitou bastante né?”, ri a farmacêutica. Ela e o irmão vêm recebendo convites para palestras em países como EUA, Egito e Emirados Árabes.
Ela conta que uma de suas maiores preocupações no uso da inteligência artificial é com ética.
“A inteligência artificial precisa ser usada sempre para suporte a decisões [humanas] e ela precisa sempre ser explicando quais são as suas referências. Isso é o mais importante. “