Capa do livro do arquiteto Gabriel Weber, sobre a linha de ônibus 474.
Reprodução
Uma das linhas de ônibus do Rio de Janeiro é a estrela de um livro que será lançado no próximo dia 11, em São Paulo, na livraria Megafauna do Edifício Copan. A 474 (Jacaré-Copacabana) cruza boa parte da cidade, do pé de uma grande comunidade, na Zona Norte, até as areias da praia mais turística, na Zona Sul — mas não raro aparece em manchetes sobre assaltos, tumulto e depredação.
Gabriel Weber, arquiteto e autor do livro homônimo à linha que frequenta desde a adolescência, conta, mais ou menos no tempo de uma viagem de 474, como o ônibus ajuda a “entender o Rio no original”.
A obra é fruto de anos de observação do autor subindo naqueles coletivos, observando e conversando com passageiros. Ele aborda questões como a diferença do perfil de viajantes durante a semana e aos sábados e domingos; arrastões atribuídos a jovens que usam o ônibus; e blitzes.
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Ponto inicial do 474, desenhado por Gabriel Weber.
Gabriel Weber
Ponto de partida
O calçamento dá a dica. Na altura do número 150 da Rua Álvaro Seixas, no Engenho Novo, um pedacinho da calçada é estampado com o padrão de Burle Marx, que se tornou um símbolo da praia carioca. Ali é o ponto de onde sai o 474.
Gabriel Weber começou a pegar esse ônibus na adolescência. Durante as férias e as greves do Colégio Pedro II, ele fazia bicos de office-boy na empresa de seguros da família, que mora, há gerações, no Riachuelo.
Gabriel Weber, autor – e passageiro – de “474 (Jacaré / Copacabana)”.
Sergio Telles
Saía de lá para o Centro e para a Zona Sul para entregar e recolher a papelada dos clientes. E, às vezes, para ir à praia. “Não tem água limpa na Baía de Guanabara”, disse Weber. “A única opção de balneabilidade por aqui é o Buraco do Lacerda”, brinca.
O Buraco é uma passagem semienterrada que conecta o Jacaré à Avenida Dom Hélder Câmara, um dos principais eixos viários da Zona Norte. E, como conta Gabriel, costuma ficar alagada com o transbordo do poluído Rio Jacaré, depois das chuvas de verão, e vira “a única opção de lazer aquático no bairro”.
Ilustração da “piscina efêmera de esgoto”, o Buraco do Lacerda, descrito pelo autor.
Gabriel Weber
Em 2015 Weber entrou no curso de arquitetura na UFRJ e a linha ganhou mais uma função. Para visitar casas dos colegas, ele ia de 474. “Eu descobri um novo Rio de Janeiro”, disse. E outra novidade foi o choque com seu meio de transporte.
“Linha do inferno, quatro-sete-crack e Cavalo de Troia”, são alguns dos nomes que ele ouviu para descrever o veículo que sempre o levou para cima e para baixo. Este último da boca de uma colega, moradora de Laranjeiras.
Ela perguntou como ele tinha coragem de andar no ônibus que, segundo ela, transportava ladrões, vindos da Zona Norte, em busca vítimas na sua vizinhança.
“E eu falei para ela: ‘Ué, é o ônibus que passa na porta da minha casa'”, contou Gabriel, em entrevista ao g1, durante uma viagem na linha.
No mesmo ano, a linha correu risco de extinção. “Estava rolando aquele processo de racionalização das linhas de ônibus e o 474 ia ser cortado”, disse. “Tudo aquilo que eu via, e que eu sabia que era mais rico do que as notícias de violência sobre a linha ia ser perdido.”
Então, ele assumiu a tarefa de registrar com mais nuance essa história.
O ônibus 474 (Jacaré – Copacabana).
Sergio Telles
O caminho
Gabriel começou a embarcar no ônibus de sempre com um novo olhar. “Fui fazendo uma antropologia fajuta de arquiteto”, contou. Munido de uma fita métrica, um caderninho vermelho, e uma câmera analógica descartável, ele começou a estudar o espaço e seus habitantes.
A câmera – ele fez questão de ressaltar – não foi uma escolha estética, mas prática. Apesar de fotografar melhor que seu aparelho da época, seria uma perda menos importante, caso quebrasse ou fosse roubada no processo.
A primeira e mais óbvia constatação foi que, nos sábados de sol – aqueles que rendem manchetes – o 474 é outro ônibus.
“Aquela máquina de moer gente, a semana toda, vira quase um trio elétrico de carnaval”, descreve Weber.
De segunda a sexta, Gabriel viu e conversou com pessoas que iam para a Zona Sul trabalhar, geralmente no setor de serviços.
“O 474 só existe porque o Centro e a Zona Sul precisam da mão de obra aqui do Jacaré. Mas ver isso de forma solta, ou só como uma linha no mapa, não oferece a dimensão do trajeto”, disse.
E descrever bem esse “ecossistema” foi uma preocupação que dobrou de tamanho quando, com o curso interrompido por um incêndio na UFRJ, Weber se mudou para Portugal, para continuar os estudos na Universidade do Porto.
Lá, ele decidiu escrever uma dissertação de mestrado sobre o ônibus que cruza sua cidade natal. E precisou literalmente desenhar o 474 para suas professoras orientadoras portuguesas. Sorte que, como arquiteto, essa é a sua especialidade.
Desenho que representa a entrada do ônibus.
Gabriel Weber
Durante a pesquisa, Gabriel entrevistou um assaltante – e quase foi assaltado. Ele observou o funcionamento dos arrastões e a função da depredação. “As janelas são as primeiras vítimas materiais”, contou.
Seja para se pendurar delas, para aliviar o calor quando o ar-condicionado não dá conta, ou para abrir meios alternativos de entrada e saída do veículo, ele conta que é comum que passageiros rompam os lacres de emergência para derrubar as janelas.
Dentro do ônibus, ele apontou, com conhecimento de causa, pequenos sinais que revelam que as janelas daquele veículo tinham sido recolocadas e marcas de pontapés que perto das escotilhas – porta de saída para o teto do ônibus, onde não raro, jovens sobem para “surfar” antes mesmo de chegar na praia.
Um arrastão, desenhado.
Gabriel Weber
“O 474 encarna um pouco aquela visão maniqueísta de que o mal é este que precisamos combater”, fala Weber. “É o alvo da ‘Operação verão’ normalmente, como se ele fosse uma grande entidade do mal.”
No finalzinho do trajeto, ao chegar em Copacabana, quando o ônibus saiu da Avenida Princesa Isabel e virou para a Rua Barata Ribeiro, um policial militar fez sinal. Apesar de não ser um ponto oficial do trajeto, o motorista parou e abriu as portas.
Um agente entrou pela frente e outro por trás. Deram uma boa olhada para os passageiros. Ali, segundo Gabriel, é o lugar em que o ônibus vira também uma “parede de revista”.
Rapazes, geralmente negros e sem camisa, são tirados do coletivo ao acaso. Eles têm seus documentos verificados. Às vezes são liberados, às vezes não. Weber, que é um homem branco e costuma se vestir à moda “tropical chic” – descrição própria – nunca foi abordado.
Ônibus convertido em muro de revista.
Gabriel Weber
De lá, até o ponto final, dois militares seguiram o ônibus, em motocicletas. Gabriel conta que essa “escolta” é muito comum, e nos dias de calor mais intenso, vem desde o início da Zona Sul.
Ele também entrevistou trabalhadores, os motoristas, os surfistas do teto, os despachantes, e os vendedores – de bala, de picolé, de mate e de água-oxigenada. Colecionou histórias que dão a dimensão do 474 pelo lado de dentro.
Ponto final
Saltando em Copacabana o ar mais fresco anuncia a presença do mar, que ainda está escondido por um quarteirão. Mas para quem fez essa viagem toda, uma pequena caminhada não é nada. Finalmente, a que Gabriel chama de “a prometida praia do fim-de-semana”.
Para o passageiro é o fim da viagem, pelo menos por enquanto. Mas o 474 liga de novo o motor e parte rumo ao Jacaré. Um ônibus que ajuda a “entender o Rio no original”, como diz a introdução do livro.
“Não é uma questão de quilometragem”, esclareceu o autor. “É que ele une, ao mesmo tempo que separa, dois pontos muito diferentes da cidade. Pontos que tem uma relação ambígua e simbiótica, um dependo do outro para existir”, disse.
Weber aproveitou a viagem para comemorar o lançamento do livro com um mergulho.
Um ônibus “famoso, sempre nas páginas policiais” – como disse um transeunte, ao g1, ainda no ponto inicial – virou um tema para a editoria de cultura. “Eu sinto que eu devia isso a ele,” disse o autor.
A tão esperada praia, registrada pela máquina descartável.
Gabriel Weber
*Estagiária sob a supervisão de Janaína Carvalho