Bombas ‘lançadas’ por caça em cidade mineira geraram pânico e indenização milionária
O dia 2 de abril de 1987 entrou para a história de Formiga (MG), cidade no Centro-oeste de Minas Gerais. Em plena tarde de quinta-feira, duas bombas despencaram do céu, lançadas acidentalmente por um caça da Força Aérea Brasileira (FAB) durante um treinamento.
A queda dos artefatos, mesmo sem carga explosiva, deixou os moradores em pânico. Naquele dia, acontecia um protesto na cidade, e os manifestantes acharam que as bombas eram uma represália. Meses depois, a Aeronáutica indenizou o município. A FAB não comentou o acidente (leia mais abaixo).
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▶️ Dois caças F-5, do 1º Grupo de Aviação de Caça (Gavca), da Base Aérea de Santa Cruz (RJ), sobrevoavam a cidade em uma missão de treinamento para simular um ataque a uma ponte ferroviária no bairro Vargem Grande, segundo os registros da época. Por um erro, os dois projéteis, que pesavam cerca de 200 kg cada, foram liberados de um dos aviões.
Uma das bombas atingiu um muro do Parque de Exposições Luiz Rodrigues Belo Primo, e a segunda caiu a cerca de 20 metros de um galpão que abrigava a Escola Estadual Aureliano Rodrigues Nunes, onde estavam centenas de pessoas. Ninguém se feriu.
“Um dos pilotos, sem querer, apertou o comando, e caíram duas ogivas. Elas não tinham espoleta, por isso, não explodiram. Uma delas atingiu o muro do Parque de Exposições, e a outra caiu a poucos metros de um galpão cheio de crianças que estavam em aula. Se tivesse sido dentro do prédio, seria uma tragédia sem precedentes”, contou o historiador Helton da Costa Pinto.
Bomba que caiu em Formiga, MG, exposta em praça da cidade
Poder Aéreo/Reprodução
Uma das cápsulas permanece exposta na Praça da Bomba, construída exatamente no ponto da queda, o que mantém viva a lembrança do dia em que Formiga virou notícia no Brasil e no mundo.
Especialistas em aviação explicam que as cápsulas eram apenas componentes para simular o peso e aerodinâmica de bombas reais, sem espoleta nem carga explosiva. Eram preenchidas com concreto. (leia mais).
Arte mostra os pontos onde bombas da FAB caíram em Formiga, em 1987: uma atingiu o muro do Parque de Exposições, hoje Praça da Bomba, e a outra caiu a 20 metros de um galpão da Escola Estadual Aureliano Rodrigues Nunes. Ninguém se feriu.
Arte/g1
Pânico
O impacto contra o solo foi ensurdecedor. O estrondo ecoou por toda a cidade, fez janelas tremerem, portas baterem e assustaram os moradores, que não sabiam o que estava acontecendo, segundo o historiador Helton.
O então prefeito Eduardo Brás, hoje com 75 anos, disse que foi dos momentos mais marcantes de sua vida pessoal e pública. Ele estava na prefeitura quando recebeu a notícia por telefone de que bombas haviam caído.
“Imediatamente larguei tudo que estava fazendo e fui para o local. Chegando lá, a população estava toda atordoada, em pânico, porque era uma região muito habitada. Naquele momento, funcionava nos galpões uma escola com mais de 250 crianças. Se uma dessas bombas tivesse caído cinco metros antes, teríamos perdido inúmeras vidas”, afirmou.
Segundo ele, o primeiro sentimento foi de alívio. Afinal, as bombas haviam caído em locais isolados e não explodiram.
“Agradecemos a Deus por não ter tido nenhuma vítima. Foi um trauma, um momento muito difícil. Depois do ocorrido, qualquer avião que passava no céu assustava as crianças, que diziam: ‘vai cair bomba, vai cair bomba’. Houve um medo coletivo por um bom tempo em Formiga”, disse.
À época, Formiga tinha cerca de 60 mil habitantes. Hoje, segundo o IBGE, são 70.897.
Indenização
Em junho de 1987, a Aeronáutica pagou ao município uma indenização de 1,5 milhão de cruzados — o equivalente a R$ 5 milhões atualmente —, valor usado em obras como a conclusão da rodoviária e a abertura de uma avenida. (veja mais abaixo como foi a negociação da indenização)
O g1 entrou em contato com a FAB pedindo um posicionamento sobre o fato ocorrido em Formiga e também sobre as medidas adotadas atualmente para prevenir episódios semelhantes, mas não obteve retorno até a última atualização da reportagem.
Protesto
No mesmo dia da queda das bombas, população protestava contra o governo federal no Centro de Formiga em 1987. Um dos artefatos atingiu o muro do Parque de Exposições
Reprodução/Formiga Fatos e Fotos
O episódio aconteceu no mesmo dia em que cerca de 5 mil pessoas protestavam em Formiga contra a política econômica do governo de José Sarney, na Praça Getúlio Vargas. O país enfrentava os efeitos da crise econômica, após o fracasso do Plano Cruzado, lançado em 1986 para conter a inflação.
Os moradores, na hora, pensaram que a cidade estava sendo bombardeada em represália à manifestação.
Além da queda das bombas, os aviões começaram a sobrevoar o centro da cidade em baixa altitude, à procura do local da queda, o que aumentou ainda mais o pânico entre os habitantes.
Pressão militar e negociação por indenização
Caças F-5EM, versão atualizada do modelo usado quando as bombas caíram em Formiga
Roberto Caiafa/Tecnologia & Defesa
As bombas, pesadas, se enterraram a mais de dez metros de profundidade e foram retiradas com retroescavadeira da Prefeitura. O clima se acirrou com a chegada de militares, que exigiram a entrega imediata dos artefatos. O prefeito resistiu e chegou a enfrentar um general dentro do gabinete.
“Não entreguei as bombas, afinal, mais pressão que a Aeronáutica fizesse, eu não deixei tirar daqui, porque aquilo era prova de um crime”, disse Eduardo.
O historiador Helton, que estava no gabinete do prefeito, relembrou o momento de tensão. “Lembro que o general entrou sem ser convidado, e o Eduardo disse: ‘a ditadura acabou, você vai ter que esperar lá fora, porque eu atendo o povo primeiro’. Ele não liberou as bombas até negociar uma indenização para o município”, afirmou.
Para o ex-prefeito, o episódio refletia o Brasil recém-saído da ditadura.
“Essa turma de militares ainda se julgava donos do país e senhores da verdade. Não tinha a menor responsabilidade. Eu acho que foi um ato de muita irresponsabilidade. Se aqui é rota de acesso, rota de treinamento ou não, os aviões que tivessem cuidado”, afirmou.
Bombas inertes de 230 kg que caíram em Formiga, em 1987, foram retiradas do solo com retroescavadeira, transportadas e depois armazenadas pela prefeitura
Reprodução/Formiga Fatos e Fotos
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Do acidente à indenização
Eduardo Brás contou que, diante da repercussão nacional do caso, reforçada por um discurso de João Pimenta da Veiga na Câmara dos Deputados, a imprensa se voltou para Formiga e o governo federal teve de agir.
“O ministro Otávio Moreira Lima me ligou pessoalmente. Pediu desculpas, garantiu providências e eu disse: ‘graças a Deus não houve vítimas, mas o Município quer uma indenização por danos morais’. Mandei planilhas assinadas por engenheiros e secretários da prefeitura, e logo o pagamento foi autorizado”, disse.
Os recursos da indenização foram aplicados na conclusão do Terminal Rodoviário Presidente Tancredo Neves e na abertura da Avenida Tabelião Gil Calmeida.
“Esse dinheiro foi essencial para obras que estavam paradas. No fim, conseguimos transformar a tragédia em conquista”, resumiu o ex-prefeito.
Entre memória e trauma: como Formiga lembra o episódio
Notícia publicada em jornal da época: queda de bombas em Formiga tiveram ampla cobertura pela imprensa
Poder Aéreo/Divulgação
De acordo com o historiador, o episódio em Formiga ganhou repercussão nacional e internacional, chegando a ser noticiado pelo Fantástico e outros programas de TV.
“Formiga apareceu em tudo quanto era jornal. Até hoje, em pesquisas de marketing, a história da bomba é a mais conhecida da cidade”.
Mas Eduardo Brás fez questão de lembrar que, apesar do humor com que o episódio por vezes é tratado, o sentimento à época foi de medo.
“Alguns levam pelo lado cômico, mas eu sei o que passei naquele momento. Foi traumático para a população. Não considero um troféu. Foi uma triste memória de irresponsabilidade militar”, enfatizou o ex-prefeito.
Anos depois, os projéteis ficaram guardados no almoxarifado da Prefeitura e só foram expostos quando outra gestão decidiu erguer um pequeno monumento, instalado no meio de uma praça, nomeada à época “Praça da Bomba”, que fica na Avenida Geraldo Almeida, local exato onde uma das bombas caiu. O artefato que ficou na cidade está exposto lá e junto dele há uma placa que resume a história aos visitantes.
O episódio também deu origem a lendas urbanas. Uma dizia que o piloto teria desviado o avião para sobrevoar a casa da namorada, em Campo Belo. Outra sugeria que as bombas teriam sido lançadas de propósito para reprimir o protesto popular em Formiga. Segundo o historiador, ambas são falsas.
ASSISTA ABAIXO – Formiga tem novo espaço dedicado à preservação da história local
Formiga tem novo espaço dedicado à preservação da história local
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