Entenda como uso de agrotóxicos prejudica comunidades no Ceará
A professora aposentada Maria do Carmo Silva, de 68 anos, recebeu com preocupação a notícia de que os peixes do rio próximo de sua casa no distrito de Oiticica, em Crateús, estão contaminados com agrotóxicos e podem causar doenças, como câncer.
Publicada em agosto deste ano, uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) aponta que o uso indiscriminado de inseticidas na agricultura tem causado contaminação dos pescados em um trecho do Rio Poti que banha o distrito de Oiticica e Ibiapaba.
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As pesquisadoras responsáveis pelo estudo descobriram o problema após moradores relatarem que os peixes apresentavam alterações nos olhos, como vermelhidão.
Com equipamentos em mãos e contando com a ajuda de pescadores, as estudantes Ana Clara Rosendo e Isadora Brandão partiram para a zona rural de Crateús. O diagnóstico é preocupante: comunidades tradicionais que vivem às margens do Rio Poti têm alimentação ameaçada por causa do uso acentuado de contaminantes.
O Rio Poti banha os distritos de Ibiapaba e Oiticica na cidade Crateús, interior do Ceará.
Lincoln de Sousa (Arte)
A contaminação silenciosa
Barragem sobre o Rio Poti, em Crateús.
Acervo dos municípios brasileiros/IBGE
Quando chegou na região, aos dois anos de idade, Maria do Carmo encontrou um cenário diferente do que vive hoje. Com apenas 17 famílias, Oiticica é conhecida no sertão cearense como uma ‘cidade-fantasma’. O distrito abrigou parte da estação ferroviária do município de Crateús, mas quando o projeto foi interrompido, toda a estrutura montada também foi abandonada.
“Em 1967/68 tinha comércios grandes, padaria, açougue e um quartel do exército. Era muito movimentado. Hoje foi destruída a maioria das casas que o batalhão deixou. Temos apenas 17 famílias, com cerca de 50 moradores”, relata.
No distrito de Oiticica, uma estação ferroviária da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) chegou a levar movimento para a região, hoje conhecida como “cidade fantasma”.
Acervo dos municípios brasileiros/IBGE
Para chegar no Rio Poti, Maria caminha cerca de 20 minutos. Antes, fazia esse trajeto quase diariamente para coletar a ‘água de beber’ de sua casa em um olho d’água.
Hoje, no entanto, ela e outros moradores não dependem mais do Rio Poti, embora pesquem nele ‘quando a carne está mais difícil’.
“Eu fiquei preocupada quando soube da história da pesquisa, que os peixes estavam contaminados. De vez em quando, a gente come um peixinho desse rio. O pessoal da comunidade, quase todo mundo, come desses peixes. Mas, graças a Deus, ninguém teve problema ainda”.
A professora também foi agente de saúde na região e está acompanhando de perto os desdobramentos da pesquisa da UFC. Ela recebeu na última semana um grupo de pesquisadores em sua casa. Eles repassaram os primeiros resultados do relatório.
De acordo com o estudo, a ingestão de apenas 150g/dia de filé de peixe contaminado por um período de 70 anos pode estar associada ao desenvolvimento de doenças graves, como câncer, além de outros efeitos adversos, incluindo disfunções hormonais e neurológicas.
O relatório preocupa os pesquisadores da universidade, que lembram a importância da segurança alimentar dos povos originários e tradicionais da região. Os estudiosos afirmam que não querem assustar, mas pensar soluções que possam brecar um problema maior no futuro.
Além da utilização cada vez maior de pesticidas na agricultura, a influência das mudanças climáticas – como o aumento das temperaturas e escassez de chuvas no município de Crateús – ameaçam os peixes, os seres humanos e quem mais estiver exposto.
Resultados de pesquisas da UFC em Crateús alertam para contaminação por agrotóxicos de peixes no rio Poti
Reprodução/UFC
O estudo iniciou ainda em 2023, quando pesquisadores encontraram alterações nos olhos de peixes de um trecho do rio que corta o distrito de Ibiapaba, em Crateús. A partir desse problema, a UFC de Crateús em parceria com o Laboratório de Avaliação de Contaminantes Orgânicos (Lacor) do Instituto de Ciências do Mar (Labomar-UFC) iniciaram os estudos em agosto de 2024.
Os resultados começaram a ser divulgados em abril deste ano com identificação e quantificação de poluentes emergentes e persistentes nos músculos dos peixes coletados na região. Tudo isso virou o trabalho de conclusão de curso das estudantes Ana Clara Rosendo e Isadora Brandão, ambas formadas em Engenheira Ambiental pela UFC sob orientação da professora Janaina Lopes Leitinho.
“Quando a gente recebeu alguns comentários de que regiões rurais estavam com evidências de peixes com olhos vermelhos, resolvemos estudar. O primeiro desafio era saber como esses peixes poderiam estar contaminados nessas regiões rurais que estão a mais de 100 quilômetros das principais fontes de contaminação emergentes”, explica Janaína.
Equipe de campo UFC campus Crateús e Labomar campus Fortaleza.
Arquivo pessoal
Uma viagem de carro até Oiticica ou Ibiapaba leva cerca de uma hora partindo da sede do município de Crateús. A agricultura familiar é forte nas duas regiões e, de acordo com as pesquisadoras, a origem dos agrotóxicos que contaminam os peixes é ‘difusa’.
“A contaminação por agrotóxico pode acontecer de várias maneiras: pelo ar, que leva esses resíduos para a água diretamente, ou através da chuva, que cai e ‘arrasta’ junto com ela. Também ocorre por infiltração do próprio pesticida na terra, que atinge os lençois freáticos e acaba sendo levado, querendo ou não, para os rios”, pontua Ana Clara.
Além dos inseticidas, o descarte inadequado de resíduos sólidos e a falta de saneamento básico também são fatores que prejudicam o rio e as comunidades. Diferente de Oiticica, Ibiapaba é maior e tem mais moradores.
Ainda assim, os dois distritos vivem da agricultura familiar, pesca e pequenos comércios. Um risco como este apresentado pela pesquisa pode ser uma ameaça significativa à subsistência dessas populações:
“A nossa intenção não é achar um culpado, é achar uma solução. Até porque sabemos que são fontes difusas, não tem como chegar e dizer: ‘É bem aqui que está sendo pontuado, é bem aqui que está entrando a poluição’. Não tem como saber isso. Sabemos que nos distritos não tem coleta de esgoto, não tem coleta de lixo. Na Ibiapaba ainda tem, mas na Oiticica é um lugar muito remoto. Lá só chega de moto ou de carro 4×4. Um carro normal não chega, um caminhão normal não chega”, disse a engenheira ambiental.
Riscos à saúde
Imagem mostra trecho do Rio Poti na zona urbana de Crateús em bairros de renda baixa onde moradores pescam para se alimentar. A espuma observada é resultado de poluição.
Reprodução/Janaína Leitinho
O ponto que mais preocupa as pesquisadoras é a influência que os peixes contaminados podem trazer para a saúde dos moradores desses distritos. De acordo com Maurício Macedo, químico industrial e mestre em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente, a exposição crônica a resíduos de agrotóxicos “produzem efeitos diversos e muitas vezes silenciosos.”
😷 Do ponto de vista toxicológico e bioquímico, os problemas que mais aparecem na literatura e na prática são:
Perturbação endócrina: alguns agrotóxicos atuam como disruptores endócrinos, interferindo em hormônios sexuais, tiroidianos e do crescimento.
Déficits neurológicos: exposições repetidas a certas classes (organofosforados, por exemplo) estão associadas a perda de memória, dificuldades cognitivas, alterações do comportamento e, em longo prazo, maior risco de doenças neurodegenerativas.
Comprometimento hepático e renal: fígado e rins são rotas principais de detoxificação/excreção onde a sobrecarga ou compostos bioacumuláveis podem levar a lesões funcionais.
Problemas reprodutivos e desenvolvimento fetal: estudos mostram associação entre exposição materna e baixo peso ao nascer, malformações e alterações do desenvolvimento neurológico infantil.
É justamente este o alerta do estudo: a ingestão de apenas 150g/dia de filé de peixe contaminado pode estar associada ao desenvolvimento de doenças graves, como câncer, além de outros efeitos adversos, incluindo disfunções hormonais e neurológicas
“Quando a gente compara os dados da pesquisa com a taxa de óbitos de pessoas com câncer para a região norte do Ceará, calculando a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes, Crateús lidera . É importante entender que o câncer é multifacetado. Não só a alimentação é o ponto único para se observar, tem também exposições a contaminantes diversos, obesidade, disposição genética. Mas, nos deixou curioso o fato dessa taxa de mortalidade ser alta. A gente não pode afirmar que é porque eles comem peixe que eles estão adoecendo, mas a gente fica em aleta”, comenta a professora Janaína.
Peixes necrosados
Imagens microscópicas do músculo de peixes. Na 1° imagem, observe um parasita; na 2° foto, veja o processo de necrose.
Reprodução/Pesquisa UFC
O estudo começou com a coleta de tecido muscular de peixes encontrados dentro e fora da Área de Proteção Ambiental (APA) do Boqueirão do Poti, considerada a maior Unidade de Conservação estadual do Ceará com 63.332 hectares que se estendem pelos municípios de Crateús, Poranga e Ipaporanga.
Em seguida, foi feita a preparação das amostras e, depois, a identificação dos contaminantes.
Foram coletados 47 exemplares de peixes no Rio Poti, abrangendo diferentes espécies:
Tilápia
Bodó
Piau
Tucunaré
Curimatã
Branquinha
Piranha
Traíra
Cangati
Voador
Cará-preto
A escolha por estudar o tecido muscular do peixe ocorreu por essa ser a parte mais consumida pelos seres humanos e, portanto, a principal via de exposição a contaminantes. As amostras foram armazenadas em recipientes e enviadas ao (Laboratório de Contaminantes Orgânicos) da UFC, em Fortaleza, onde foram realizadas as análises para identificação e quantificação dos agrotóxicos.
Os resultados indicaram que os piretróides (PPs) foram a classe de inseticidas predominante nos músculos dos peixes. Eles são inseticidas sintéticos utilizados para o controle de pragas na agricultura e em outras áreas e estão associados a riscos neurológicos e endócrinos.
➡️ Outros pesticidas encontrados foram:
Organoclorados (OCPs): apresentam potencial cancerígeno
Éteres difenílicos polibromados (PBDEs): inseticida associados a riscos neurológicos e endócrinos
Bifenilos policlorados (PCBs): apresenta potencial cancerígeno.
No distrito de Ibiapaba, localizado fora da Área de Proteção Ambiental (APA), foram registradas as maiores concentrações de contaminantes, sugerindo maior exposição a fontes agrícolas. As espécies mais contaminadas foram a curimatã e o bodó. De acordo com a pesquisa, essas duas espécies estão associadas a hábitos alimentares de ribeirinhos que vivem próximos à várzea do rio.
No corpo do peixe, os agrotóxicos também causam alterações. A mais importante é a necrose, considerada severa e irreversível. “Mas há algumas evidências de parasitas, congestão vascular e infiltração leucocitária (entupimento de veia). Há também os melanomacrófagos, que são concentrações e acúmulos de melanina, que são indicadores das condições estressantes no ambiente aquático.”, acrescentou Isadora Brandão, também pesquisadora.
As mudanças climáticas registradas em todo o mundo nos últimos anos, como ondas de calor e escassez de chuvas, também acabam intensificando os prejuízos causados pelos contaminantes. No fim, sofrem o Rio Poti, os peixes e os humanos:
“Quando ocorrem as secas, o nível do rio Poti fica bem baixo e formam lagoas pela cidade. Com isso, há uma concentração maior dos contaminantes ali. Então, se há uma concentração maior, os peixes estão mais expostos a maiores concentrações de contaminantes. Então, eles vão ser impactados de forma negativa”, pontuou Isadora.
Com a falta de recursos, os sertanejos enfrentam dificuldades na busca pelos alimentos, ao mesmo tempo que encaram desafios no controle de pragas na agricultura.
“Nós do Ceará, especialmente de Crateús, temos os maiores índices de raios solares. Isso faz com que a evaporação dos nossos reservatórios, inclusive do Rio Poti, seja também elevada. Em pouco tempo, nossos rios e reservatórios estão secos”, acrescentou Janaína Leitinho.
Moradores esperam mais respostas
Maria do Carmo atuou como professora e agente de saúde na região. É considerada líder comunitária e chegou no distrito de Oiticica com apenas 2 anos de idade.
Lincoln de Sousa (Arte)
Aposentada há cerca de três anos, Maria do Carmo acompanhou de perto os problemas causados pela falta de estrutura, como o saneamento básico. O posto de saúde mais perto de sua comunidade é o que fica em Ibiapaba, a cerca de 21 quilômetros.
“Aqui, na época do inverno, quase todo mundo planta seu feijão, o milho, a melancia, o jerimum. É o que mais cria por aqui, porque é muito seca a terra. O pessoal também se alimenta de galinha, porco. Quase todo mundo tem seu porquinho de criação. E, de vez em quando, as pessoas pescam e dão peixe para os que não pescam. Os problemas de saúde, quando comecei a trabalhar, aconteciam principalmente em crianças: gripe forte e diarreia”, relembra.
Após saber da pesquisa, disse que vai tomar mais cuidado com o consumo de peixes e deve conversar com os vizinhos para reforçar a importância da higiene, entre outras prevenções. Por enquanto, o ritmo segue tranquilo no distrito:
“A gente precisa ter um pouco mais de cuidado e esperar para ver como fica (…) Eu ainda vejo, de vez em quando, alguém indo pescar e trazendo seu peixinho. Ainda não está muito comentado e as pessoas não estão tão preocupadas”, disse Maria.
Já as pesquisadoras da UFC ouvidas pelos g1 afirmam que querem ampliar a pesquisa e abordar outros ângulos, especialmente o da saúde. Elas estão em contato com as comunidades, repassando os resultados do relatório, e já alertaram a prefeitura de Crateús sobre o problema.
“O ponto principal dessa pesquisa é a conscientização tanto de quem consome o peixe, tanto de quem faz parte da poluição, seja um órgão público, uma empresa privada, os trabalhadores do lado de fronteiras ou as pessoas ao redor do rio. Cada pequena mudança na cabeça da pessoa faz diferença. É o que vai mudar a realidade do meio ambiente. Com esse estudo, a gente consegue conscientizar pelo menos uma pessoa já é um resultado”, comenta Ana Clara.
O problema, no entanto, ainda pode ser maior do que o apresentado. Segundo as pesquisadoras, um monitoramento ambiental é indispensável e deve ser intensificado em todo o percurso do rio Poti. O g1 entrou em contato com a gestão municipal de Crateús para entender quais os próximos passos e aguarda retorno.
Até pouco tempo atrás, não se sabia nem da existência desse rio federal e agora a gente já está estudando sobre ele. A UFC veio para o interior e possibilitou essa visão diferente. As políticas públicas têm que ser planejadas de forma urgente. A gente não vai conseguir a solução de forma imediata, mas estamos dispostos a levantar uma bandeira de proteção para que não fechemos mais os olhos para o meio ambiente, porque isso reflete diretamente na conservação do meio ambiente e na saúde das pessoas
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