
     Como o glitter virou ingrediente de bolos e doces?
Brilho, cor e acabamento fazem parte do encanto da confeitaria. Mas e se a aparência reluzente tiver relação com plástico na receita? O debate sobre esse tema tomou conta das redes sociais e do setor de confeitaria nos últimos dias, depois que a Anvisa reforçou que o glitter com polipropileno (PP) e outras substâncias plásticas não deve ser ingerido.
A polêmica começou com um vídeo publicado pelo influenciador Dario Centurione, do canal Almanaque SOS, que mostrou bolos e sobremesas com brilho intenso por causa do glitter e questionou a segurança desse tipo de material. Após o vídeo viralizar, a Anvisa se manifestou condenando o uso do produto nas receitas.
A Anvisa afirmou em um post que o pó decorativo ou glitter com polipropileno (PP) micronizado (ou outras substâncias plásticas) não deve ser ingerido
reprodução redes sociais
Centurione lembrou que “não existe glitter comestível industrializado” e defendeu que todos os produtos seguros para ingestão humana tenham a palavra “alimentício” visível no rótulo. “As confeiteiras e lojistas não são culpados. Elas foram induzidas ao erro. É um problema de saúde pública”, disse ao g1.
Influenciador Dario Centurione, do canal Almanaque SOS
Reprodução/Instagram
Diferença entre os tipos de glitter e pós decorativos
Segundo especialistas ouvidos pelo g1, há distinções importantes entre os produtos disponíveis no mercado:
Pó decorativo industrializado com PP ou PET: contém plástico micronizado e serve apenas para decoração externa, não devendo ser ingerido nem usado em bolos.
Glitter com PP, PET, PVC, PMMA ou resina: é feito de plástico, não comestível, e seu uso em doces é desaconselhado; equivale à purpurina de papelaria.
‘Glitter’ caseiro comestível: produzido com ingredientes alimentares, como amido, gomas e corantes; é seguro para consumo.
Pó decorativo alimentício industrializado: deve ter rótulo com “para fins alimentícios” e código INS; pode conter traços controlados de metais.
Produtos artesanais: voltados para papelaria e cosméticos, não têm aprovação sanitária para uso em alimentos.
Glitter no carro e na casa do ex: por que limpar será tão difícil? Física e química mostram ‘tamanho da vingança’
⚠️Como identificar?
Os rótulos de produtos alimentícios devem exibir:
Lista completa de ingredientes;
Código de classificação INS de cada item usado como ingrediente pela marca
Data de validade e número de lote;
Informação sobre glúten e possíveis alergênicos;
Indicação explícita de que é um produto alimentício.
ATENÇÃO: A ausência dessas informações indica que o produto não é classificado como alimento e, portanto, não deve ser ingerido
Atóxico x comestível
O professor de química e perito químico André Simões explicou ao g1 que o ponto de atenção está na crescente preocupação com os microplásticos e que o princípio da prudência é inegociável.
Atóxico não é o mesmo que comestível. Apenas pode entrar em contato com o alimento sem contaminá-lo. O polipropileno (PP) ou o Poli (tereftalato de etileno) (PET) são plásticos amplamente utilizados em embalagens de alimentos e bebidas (garrafas de água, refrigerantes, potes de salada).
“Estas são partículas minúsculas (incluindo fragmentos de polímeros e até mesmo o pó liberado pela frenagem de pneus) já detectadas na corrente sanguínea, em organismos marinhos e, como indicam estudos, até no cérebro”, afirma Simões.
O que dizem as confeiteiras
Influenciadores viralizaram nas redes sociais com posicionamentos sobre esse uso inadequado de produtos decorativos por parte de confeiteiras, muitas vezes influenciadas pelas fabricantes.
Confeiteiras destacam que empresas que vendem esses produtos as induziram ao erro durante anos, por meio de treinamentos realizados em feiras presenciais e por meio de vídeos tutoriais publicados nas redes, em que produtos decorativos eram usados como alimentícios.
Além disso, elas alegam que, nas lojas físicas, esses produtos sempre foram vendidos ao lado de produtos alimentícios. “Nenhuma confeiteira vai a uma loja de confeitaria comprar um produto para fazer artesanato. Então não deveriam vender (naquele local). Isso induz ao erro”, afirma a confeiteira Rosangela Policarpo em uma rede social.
A professora de confeitaria Juliana Helena, formada em gastronomia e confeitaria, acrescenta que, em cursos profissionalizantes, os professores explicam que os confeiteiros devem ler os rótulos de todos os produtos.
Helena afirma que, no caso do uso de produto irregular, todos têm uma parcela de culpa: a fabricante, a loja, o confeiteiro e os órgãos fiscalizadores.
“As pessoas acabam deixando de lado essa parte importante que é ler os rótulos e a indústria induz totalmente o pequeno empreendedor a produzir doces com produtos inadequados. Eles já começam a fazer isso com vídeos que eles postam. Muitos confeiteiros sabem que o produto é inadequado e usam assim mesmo, mas a maioria não sabe”, afirma.
A professora e influencer de confeitaria Julia Postigo, também bacharel em Química de Alimentos pela USP, disse que empresas promovem lives, aulas, vídeos curtos e receitas em blogs usando glitter plástico diretamente em contato com o alimento.
“Nas lojas, esses produtos ficam ao lado dos corantes. Nas feiras, são brindes dos fabricantes para a confeiteira usar nos doces. Por anos, a informação incorreta foi disseminada de maneira velada. Agora as marcas dizem que não ensinaram ninguém a comer glitter”, disse Postigo.
Ela defende que o melhor cenário seria que empresas de corantes alimentícios só vendessem insumos alimentícios e que retirassem os glitteres do mercado, lançando versões alimentícias, feitas de gomas, gelatina, amido e afins.
O influenciador Centurione avalia que este é um “problema gravíssimo de saúde pública” porque o principal público do glitter e do bolo brilhante são as crianças.
Confusão em lojas físicas e online
O g1 verificou diversos anúncios online em que os anunciantes usam, nas especificações técnicas de produtos decorativos, o termo “alimentício”.
Além disso, em lojas físicas, produtos decorativos, que contêm PP e PET (plástico) foram vendidos por anos ao lado de produtos alimentícios, segundo confeiteiras ouvidas pelo g1.
As confeiteiras acrescentam ainda que, nos últimos dias, grandes lojas no Rio de Janeiro, por exemplo, já mudaram esses produtos de posição, depois da polêmica.
Em São Paulo, a equipe de reportagem esteve em uma rede de supermercado especializada em confeitaria e verificou a exposição do produto na mesma prateleira ao lado de corantes e produtos de uso alimentício.
Por que tirar glitter dá tanto trabalho?
Fabricantes dizem ter orientação
Após a polêmica, a fabricante Iceberg Chef se pronunciou em um vídeo no qual afirmou sempre ter deixado claro que a marca oferecia a linha decorativa e a linha alimentícia. Mas, após perceber que a clareza da utilização das duas estava comprometida, a marca decidiu retirar todos os produtos que contêm PP de linha.
A Mago informou em post que “o produto Pó para decoração Brilho, conhecido como glitter, é voltado a trabalhos decorativos e artesanais e não como ingredientes alimentícios”. Mas confeiteiras afirmam que, diante da repercussão negativa do post, a marca apagou a publicação. Elas alegam que o produto foi divulgado como alimentício pela empresa em treinamentos e em vídeos online.
O g1 entrou em contato com a Mago e não recebeu retorno até a última atualização desta reportagem.  A equipe de reportagem também acionou as marcas Fab, Sugar Art e Flez Fest.
No tema, a atuação da Anvisa é voltada para a comercialização de alimentos. A agência não regula materiais de papelaria, escolares ou decorativos.
LEIA TAMBÉM: Cérebro tem concentração de microplásticos até 30 vezes maior que outros órgãos, indica estudo