
Quem é o tradutor brasileiro que legendou o filme mais visto da história da Netflix
O filme “KPop Demon Hunters”, que estreou no fim de junho, se tornou o mais visto da história da Netflix. Mas, para isso, foi necessário furar algumas barreiras culturais, como a da linguagem. A animação musical, que tem muito da cultura coreana, foi dublado e também legendado para o Brasil.
Você já se perguntou como é feito e quem realiza o trabalho de legendar um filme? No caso de “KPop Demon Hunters”, o responsável pelas legendas em português do Brasil é de Birigui, interior de São Paulo: o tradutor audiovisual Matheus Maggi Waltrick, de 30 anos.
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Em entrevista ao g1, Matheus contou que sua trajetória na área começou muito antes do momento de legendar o filme de sucesso mundial. O início foi lá em 2013, com a produção de fansubs – legendas voluntárias feitas por fãs.
“Eu sempre gostei muito de assistir a séries dubladas desde pequeno e, conforme fui ficando mais velho, passei a consumir muitos materiais legendados. Então, sempre ficava tentando associar as palavras da legenda ao que eu estava ouvindo. Então, decidi me juntar a alguns grupos para fazer legendas de séries que eu gostava e, ao mesmo tempo, ir treinando meu inglês”, explica.
Com isso, Matheus começou a frequentar grupos onlines nos quais o trabalho de legendar era muito mais do que só trocar o inglês pelo português. Foi por meio destes grupos que ele aprendeu a usar softwares específicos para fazer o trabalho.
Em determinado momento, o tradutor passou a cursar engenharia civil, mas fazia as traduções em paralelo ao curso, concluído em 2018. Matheus lembra que o momento após a formatura foi um dos mais complicados.
“Eu não conseguia achar emprego na minha área de formação, mas uma amiga viu que haviam aberto alguns testes em agências de legendagem. Então, decidimos tentar. Passamos, e o resto é história”, continua.
Matheus Maggi, de 30 anos, é de Birigui (SP) e trabalha como tradutor de audiovisual
Arquivo pessoal
Início de um sonho x deu tudo certo
Matheus conta que, mesmo após conseguir o trabalho na agência, continuou se profissionalizando para conseguir transformar o seu sonho em realidade.
“O ponto de virada foi justamente quando recebi meu primeiro projeto profissional para legendar em 2018, após anos fazendo voluntariamente e sonhando com esse momento. Quando o projeto foi lançado na plataforma de streaming e eu vi meu nome nos créditos, a sensação foi inexplicável: um misto de missão cumprida com empolgação”, relata.
No começo da carreira, ele fazia mais traduções de mídias que já haviam sido lançadas em outras plataformas e que estavam vindo para o Brasil novamente, mas, a partir de determinado momento, isso mudou: chegaram os projetos exclusivos.
Entre alguns dos trabalhos já legendados por Matheus estão: “How I Met Your Mother” e “How I Met Your Father”, “Prison Break”, “American Horror Story”, “Cavaleiros do Zodíaco” e o arco atual de “One Piece”.
“Sinto que fui crescendo a cada projeto e levando em conta cada feedback dos revisores. A parte mais surreal para mim é que o filme ‘Guerreiras do K-Pop’ saiu do streaming e vai para os cinemas no fim do mês, e esse vai ser meu primeiro projeto nas telonas do Brasil”, reforça.
Cena da animação ‘KPop Demon Hunters’
Reprodução/Netflix
Proposta tímida
O filme, que conta a história das estrelas do K-pop Rumi, Mira e Zoey, estreou no fim de junho e alcançou a marca de 236 milhões de visualizações na plataforma, ultrapassando os 230 milhões do longa “Alerta Vermelho”, de 2021, segundo a Variety. Mas a proposta para fazer as legendas inicialmente foi tímida, segundo o tradutor.
“Ainda não havia tantas informações sobre o filme, então eu imaginava que chamaria um pouco a atenção entre as crianças, mas todo esse sucesso estrondoso após o lançamento jamais passou pela minha cabeça”, revela.
O filme se tornou o mais visto da plataforma nos primeiros 91 dias, e o trabalho fez com que Matheus se sentisse ainda mais orgulhoso pelo que conseguiu realizar. Mesmo assim, ele continua sonhando alto e, agora, espera que o filme seja indicado para o tão esperado Oscar.
“A esperança agora é que o filme seja indicado ao Oscar de Melhor Animação e de Melhor Canção Original e, quem sabe, ganhar, sendo mais um para a minha coleção, já que traduzi o documentário ‘Professor Polvo’, que ganhou na categoria de Melhor Documentário em 2021”, conta.
Créditos das legendas do filme ‘KPop Demon Hunters’, feitas por Matheus Maggi, de 30 anos, de Birigui (SP)
Reprodução/Netflix
Bagagem cultural e criatividade
Desde o início, Matheus esteve tranquilo com a tradução desse filme em específico, já que sempre consumiu bastante a cultura coreana.
“Além de consumir alguns k-dramas, estou acostumado a fazer várias traduções indiretas, ou seja, um tradutor traduz do áudio original para o inglês, e eu traduzo do inglês para o português. Isso me ajudou bastante, porque já tinha uma noção maior de como funciona a cultura deles e de como fazer a adaptação, além de estar por dentro do mundo do k-pop, com vários amigos que são fãs desse estilo de música.”
A parte mais criativa do trabalho de tradução é a chamada localização, que consiste na adaptação de piadas, trocadilhos e expressões para a nossa língua que não funcionam quando traduzidos de forma literal. O trabalho de Matheus é ser fiel a esses trechos.
“Meu objetivo é sempre fazer o espectador rir, se emocionar ou reagir da mesma forma que o público original. Às vezes, isso exige mudar o jogo de palavras, criar uma expressão nova ou até simplificar para manter o ritmo da cena.”
Na visão de Matheus, é um trabalho que mistura fidelidade e liberdade, envolvendo o texto original, mas reconstruindo as falas de forma que funcionem na língua e na cultura de quem estiver assistindo. Por isso, o tradutor audiovisual diz que alguns profissionais até preferem pegar gêneros específicos de filmes para fazer traduções.
“É preciso saber seus próprios limites para entregar um bom trabalho e que não prejudique a compreensão do espectador. Eu, por exemplo, adoro traduzir comédias e ficar pensando em alguns trocadilhos, que podem demorar um tempo para surgir. Mas sempre fujo de programas esportivos, já que não domino nem um pouco.”
Boy band de vilões do filme ‘KPop Demon Hunters’
Reprodução/Netflix
Mas como é feito?
O trabalho de legendar pode parecer algo como “só ouvir e traduzir”, mas é muito mais complexo do que isso. O tradutor conta que é um processo com vários passos, que vão desde o recebimento dos materiais até a legenda pronta.
“O desafio de uma legenda é traduzir os diálogos falados em um texto conciso, natural, fluido e sincronizado com o som. Por isso, uma boa legenda não significa uma legenda literal, já que o texto precisa ser resumido, com a mesma ideia do diálogo original, para que o espectador tenha tempo de ler confortavelmente”, conta.
As legendas também precisam entrar e sair de tela no tempo certo, sem atrapalhar o ritmo das cenas nas quais elas estão inseridas. Na visão de Matheus, é algo artístico, pois envolve ritmo, emoção e também musicalidade. Ele exemplifica como funciona uma legenda “perfeita” para o filme ou série:
“É aquela que desaparece aos olhos do espectador e ele esquece que está lendo, além de a legenda ser fundamental para o entendimento de uma obra estrangeira em uma língua que você não domina, garantindo a acessibilidade.”
Herói silencioso
Apesar de essencial para o consumo de mídias que vêm de fora do país, Matheus afirma que o trabalho do tradutor não é muito reconhecido.
“Quando alguém de fora vê o nosso trabalho e vem nos dizer algo, é uma sensação ótima, já que a gente trabalha nos bastidores, um pouco isolado e em silêncio. E não é só vaidade, é o sentimento de ver um trabalho minucioso, que exige tanto cuidado e dedicação, sendo notado pelo público, mesmo que nosso nome apareça só nos últimos segundos do vídeo”, comenta.
Existem casos nos quais os responsáveis por esse trabalho de legendar não chegam nem a ser creditados, pois o padrão varia de acordo com a agência ou plataforma.
“Houve uma melhora nesse aspecto nos últimos anos. Ainda bem. Quando recebemos os créditos, é uma forma bonita de valorizar um trabalho que costuma ser invisível e que é essencial para que o público possa se conectar com histórias do mundo inteiro.”
Os créditos em um filme podem ser simples, mas refletem um trabalho importante e que, para Matheus, mostram que há pessoas reais por trás de cada detalhe que faz aquela experiência acontecer. “Assim como a fotografia, o figurino ou a trilha sonora, a tradução e a legendagem também fazem parte da narrativa”, completa.
Créditos de legenda em um dos episódios da série ‘The Expanse’, que foi feita por Matheus Maggi, de Birigui (SP)
Reprodução/Netflix
Créditos na legenda de um dos episódios do arco atual de ‘One Piece’, que foi feita por Matheus Maggi, de 30 anos, de Birigui (SP)
Reprodução/Netflix
*Colaborou sob supervisão de Ana Paula Yabiku
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