
O filho de Karina Midori Luz, João Pedro, um jovem autista de 18 anos, chegou ao hospital em 12 de agosto com sintomas de virose e só saiu de lá seis dias depois – quatro deles na UTI, segundo a mãe.
“As unhas começaram a ficar roxas e ele dizia que o coração estava doendo. Constataram que ele estava com a frequência cardíaca muito alta”, disse Karina.
Nesse mesmo dia, Karina Bianca Faustino Gambary, de 30 anos, foi ao mesmo hospital – o NotreDame Sorocaba – para drenar um abscesso (um cisto com pus). Ficou internada por uma semana, sendo quatro dias na UTI.
Assim como João Pedro, Karina passou mal após fazer uma tomografia com contraste de uma marca que não é regularizada no Brasil, mas que teve a compra autorizada emergencialmente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) durante a pandemia.
Outras duas pessoas passaram mal no mesmo dia após fazer o exame. Elas não ficaram internadas.
Ouvidas pelo g1, a mãe de João Pedro, a paciente Karina e a mulher de um terceiro paciente que não quis se identificar relataram sintomas como frio, tremores e taquicardia (batimento acelerado) cerca de 30 minutos após o uso do contraste.
➡️Contraste é uma substância química à base de iodo, bário ou gadolínio, usada em exames de imagem para melhorar a visualização de órgãos e tecidos.
O Hospital NotreCare Sorocaba pertence à Hapvida NotreDame Intermédica, que é o maior plano de saúde do país, com 8,8 milhões de usuários, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Segundo a Hapvida, as reações adversas dos quatro pacientes foram leves e as internações de Karina e João na UTI aconteceram devido aos problemas de saúde que os levaram ao hospital.
“O hospital reafirma o compromisso com a qualidade da assistência prestada e com a prioridade absoluta na segurança de todos os pacientes. Por precaução e visando à segurança de todos, o medicamento foi imediatamente descartado, e a Anvisa foi notificada para adoção das providências cabíveis, como órgão responsável pelo monitoramento e fiscalização desses insumos no país”, disse a Hapvida, em nota.
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Especialistas ouvidos pelo g1 afirmam que de modo geral, exames com contrastes são seguros. As reações adversas mais comuns ocorrem em menos de 1% entre adultos que utilizam o medicamento, de acordo com pesquisas científicas (clique aqui para saber mais).
‘Comecei a chorar’
João Pedro saiu do hospital no dia 18 de agosto e recebeu encaminhamento para se consultar com um cardiologista.
Segundo o relatório de alta, as hipóteses diagnósticas para o que aconteceu com ele são “sepse de foco abdominal”; “gastroenterocolite aguda”, que é uma inflamação no estômago e no intestino; “taquicardia supraventricular” e “efeito adverso ao contraste ev [endovenoso]”. Nessa última hipótese, há um ponto de interrogação ao final do registro.
No caso de Karina Bianca, segundo o formulário de emergência clínica, ela chegou ao hospital pelo pronto-socorro. Uma médica, então, pediu uma tomografia de pelve. Algumas horas depois, a paciente entrou no consultório com tremores.
“Cheguei a ficar batendo o queixo, com muito frio. Não conseguia parar. Comecei a chorar”, disse Karina.
Ela ainda apresentava “quadro de náusea”, “hipotensão severa” – pressão arterial muito baixa – e taquicardia, com 135 batimentos cardíacos por minuto. A médica prescreveu soro fisiológico, dipirona e diferidramina, que é um anti-alérgico.
Depois disso, a médica abriu um protocolo para tratamento de sepse, que é uma infecção grave, e solicitou internação na UTI, onde Karina ficou de 13 até 16 de agosto. De lá, foi para a enfermaria e recebeu alta no dia 19.
‘Cansaço sem igual, esverdeado’
O terceiro paciente com quem o g1 falou não quis se identificar. Segundo a esposa, que também pediu para não ter o nome exposto, ele chegou ao pronto-socorro com sangramento intestinal e anemia.
A médica, então, pediu uma tomografia com contraste de abdômen e pelve. Logo depois, a mulher disse que ele sentiu muito frio, mesmo com o cobertor. Teve, ainda, diarreia intensa, palidez e prostração extrema.
“Ele ficou com um cansaço sem igual, esverdeado”, contou a esposa.
A decisão de ir para casa, segundo ela, foi do paciente, mas a família percebeu depois que essa não era a melhor opção.
“Ele ficou uns três dias de cama e ainda está com a visão e audição bem reduzidas até hoje. Depois de tudo o que passamos, aprendemos que não podemos aceitar uma alta se o paciente não estiver bem”, afirmou a esposa.
Contraste importado em caráter emergencial na pandemia
O medicamento utilizado nos pacientes do hospital da Hapvida de Sorocaba foi o Biemexol, da fabricante turca Idol. Indicado para tomografias, ele é à base de iodo e tem o princípio ativo iohexol.
O Biemoxol não é liberado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser comercializado no Brasil.
Em novembro de 2022, porém, o órgão autorizou a importação de 20 mil frascos do Biemexol exclusivamente pela Notre Dame Intermédica – a empresa se fundiu com a Hapvida no mesmo ano para formar a Hapvida NotreDame Intermédica.
A Anvisa autorizou a importação de 20 mil frascos do Biemexol em caráter emergencial, em 2022.
Arte g1
Devido à pandemia de Covid, havia falta de contraste com o princípio ativo iohexol no mercado, o que justificou a autorização para a compra.
Segundo a Anvisa, foram autorizadas “importações em caráter de excepcionalidade do insumo ativo iohexol, mas com outros nomes comerciais” e para outros serviços de saúde.
O diretor da Anvisa, Daniel Meirelles Fernandes Pereira, que votou pela autorização, destacou em seu relatório (veja acima) que, como o produto não é regularizado pela agência, não é possível atestar a qualidade, segurança e eficácia, e que caberia ao plano de saúde avaliar o benefício e o risco, além de monitorar eventos adversos ou queixas técnicas.
A Hapvida NotreDame Intermédica disse que importou o contraste Biemexol em 2022 e vinha utilizando o produto até agosto de 2025, quando ocorreu o episódio em Sorocaba. Depois disso, descartou o produto de todas as suas unidades. A Anvisa avaliou que não era necessário recolher.
“Entre 1º de julho e 14 de agosto, as unidades da instituição em São Paulo realizaram mais de mil exames com esse lote, dos quais apenas quatro pacientes apresentaram reações, correspondendo a 0,4%”, disse a Hapvida NotreDame Intermédica.
A fabricante do Biemexol foi procurada, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
Riscos de medicamentos não regularizados
A farmacêutica Pamela Alejandra Saavedra, membro do Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos do Conselho Federal de Farmácia (CFF), afirma que, mesmo quando a Anvisa autoriza a importação, há riscos na utilização de medicamentos não regularizados.
“Produtos sem registro podem não ter passado por testes de pureza, esterilidade, concentração e estabilidade exigidos para medicamentos no Brasil. Isso aumenta o risco de contaminação, dosagem incorreta ou presença de impurezas”, disse a representante do Conselho Federal de Farmácia.
Os três pacientes disseram que já fizeram tomografia com contraste em outras ocasiões e não tiveram reação. Médicos ouvidos pelo g1 dizem que pessoas que não têm alergia a esse tipo de produto podem desenvolvê-la com o tempo.
O oncologista Thiago Assunção, contudo, destaca que é incomum que várias pessoas passem mal ao mesmo tempo, como aconteceu no Hospital NotreCare Sorocaba.
“O fenômeno alérgico decorre de uma interação entre o medicamento e o paciente. Em geral, se dá por uma hipersensibilidade individual à substância”, disse o médico.
Redução de riscos exige protocolo adequado
Desde dezembro de 2018, a plataforma Vigimed, da Anvisa, registrou 1.219 notificações de eventos adversos leves, moderados ou graves, causados por contrastes de diversas marcas, mas com o princípio ativo iohexol.
Segundo o oncologista Assunção, as reações alérgicas leves a moderadas são a maioria absoluta dos casos, e costumam se caracterizar por alterações na pele, coceira e tosse leve.
“Quando identificados precocemente, são passíveis de reversão após administração de medicamentos específicos”, disse o médico.
Já o choque anafilático é um evento grave, caracterizado por queda de pressão, falta de ar e até interrupção do fluxo respiratório por inchaço nas vias aéreas.
“Se não identificado e tratado precocemente, pode evoluir para parada cardiorrespiratória e morte”, disse Assunção.
Conforme o Vigimed, entre os casos graves de reação adversa ao contraste com princípio ativo iohexol foram notificadas 52 mortes, 66 ameaças à vida e 124 hospitalizações ou prolongamentos de internação desde 2018.
Especificamente em relação ao Biemexol, há registro de oito eventos adversos em 2023. Os casos mais recentes ainda não aparecem no sistema Vigimed. Segundo a Hapvida Notredame Intermédica, entre 1º de julho e 14 de agosto de 2025, as unidades da instituição em São Paulo realizaram mais de mil exames com o mesmo lote, e só os quatro pacientes de Sorocaba tiveram reação.
Riscos podem ser minimizados se adotados os protocolos corretos.
Arte g1
A farmacêutica Saavedra reforça que os contrastes são seguros, mas têm riscos que podem ser minimizados se adotados os hospitais e profissionais de saúde adotarem certos protocolos antes, durante e depois do exame.
“No âmbito da gestão institucional, é importante ter protocolos escritos de segurança no uso de contraste”, defende Saavedra.
Além disso, ela destaca a necessidade de treinamento periódico das equipes em reconhecimento e manejo de reações adversas; notificação dos eventos adversos no sistema da Anvisa e a realização de auditorias internas das instituições de saúde para garantir rastreabilidade do produto, lote e fabricante.