Em centenário das letras gráficas da Amazônia, mestres abridores fazem circuito inédito de oficinas por diversas capitais do Brasil

A Amazônia atravessa o país pelas suas letras. Ao longo de outubro — mês em que o ofício de “abrir letras” completa 100 anos — os mestres abridores deixam os estaleiros e aportam em oito capitais para, pela primeira vez, protagonizar um circuito nacional: o projeto Letras que Navegam. Em oficinas gratuitas, bate-papos e demonstrações ao vivo, o Brasil conhece a arte e quem a cria — seus autores ribeirinhos — e aprende com eles, de perto e em primeira pessoa, a técnica multicolorida que há um século batiza embarcações.
A história começa em 1925, quando a Capitania dos Portos tornou obrigatória a identificação pintada nos cascos. Do preto-no-branco às cores vivas e aos ornamentos de hoje, cada abridor desenvolveu seu “sotaque”: curvas, combinações cromáticas e composições que guardam pertencimentos nos cascos. Um século depois, quem faz passa a ensinar — e é isso que move a circulação.
Dentro da sala, o primeiro traço é um sopro. Compasso para achar a proporção, lápis para erguer o esqueleto, pincel para dar corpo. Em segundos, entra o matizado — a sombra em degradê que faz a palavra saltar; no fim, chegam os enfeites que viraram vocabulário local: caqueado, fric-fric, redinha. “Compasso, lápis, pincéis e tinta: são os fundamentos”, resume José Raimundo Fernandes Leite, o Bidula, de Igarapé-Miri, enquanto os alunos entendem por que as letras são muitas vezes divididas em duas cores: é estratégia de visibilidade nas águas barrentas — e, também, assinatura estética.
A transmissão começa pela memória. Simão Costa Sarraf, o Ramito, de Breves, no Marajó, abre a aula com a cena que o trouxe até ali: “Meu primeiro pincel foi a ‘barba de bode’”. O improviso da infância — um tufo de capim virando pincel — vira método de ensino: olhar de perto, testar, errar, acertar. Ao lado dele, Manoel Corrêa Pantoja, o Soquete, de Abaetetuba, puxa o fio do acabamento: “Letra é acabamento… tem a simples e a detalhada”. A simples identifica o barco; a detalhada emociona — e faz a comunidade reconhecer de longe o seu.
O roteiro passa por Fortaleza (Fernando Ramos da Costa), Rio de Janeiro (Joeldem “Lili”), Brasília (Donielson “Kekel”), Recife (Waldemir Caravelas), Salvador (Antônio “Toninho”), Belém (Francivaldo da Silva Oliveira e Simão “Ramito”), Curitiba (Odir Lima Abreu) e São Paulo (Rossinhe Nunes Farias). De manhã, as turmas recebem estudantes da rede pública; no turno seguinte, os espaços se abrem à comunidade com demonstrações em que as letras nascem ao vivo — e as histórias também.
Para que o conhecimento viajasse sem perder o sotaque, os mestres passaram, em setembro, por uma preparação pedagógica no III Encontro de Abridores de Letras do Pará, em Belém — mais de 20 abridores reunidos para organizar como ensinar sem podar a raiz ribeirinha. “Cada abridor tem um modo único de ensinar; o trabalho foi pensar juntos caminhos para que esse conhecimento alcance mais pessoas sem perder o território de origem”, explica a pesquisadora Marcela Castro, que conduziu a formação.
“É uma oportunidade única de mostrar a Amazônia e permitir que o Brasil conheça de perto esses artistas populares. O circuito prepara os mestres para itinerar, fortalece os laços entre eles e consolida um coletivo que carrega um patrimônio imaterial centenário”, afirma Fernanda Martins, pesquisadora, autora de Letras que Flutuam e presidenta do Instituto Letras que Flutuam (ILQF).
O gesto, afinal, é simples e sofisticado: pincel, tinta, sombra e cor para fazer o nome aparecer nas águas e pertencer às famílias que navegam. Às vésperas da COP30, a circulação ecoa uma ideia de futuro: preservar também é transmitir — garantir que o saber continue visível e vivo, longe dos rios e perto de quem nunca o viu de perto.
Serviço:
Programação completa nas redes sociais do ILQF e das unidades da CAIXA Cultural.

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