Megaoperação em 8 estados mira infiltração do PCC no setor de combustível
A superintendente da Receita Federal em São Paulo, Marcia Meng, disse nessa quinta-feira (28) que a atuação do crime organizado está se sofisticando no Brasil devido a brechas na regulação das chamadas fintechs em território nacional.
Segundo Meng, a operação Carbono Oculto – comandada por uma força-tarefa nacional de vários órgãos federais e estaduais – desvendou uma “bancarização” do dinheiro sujo do crime organizado, que tem entrado no sistema financeiro formal justamente por conta dessas empresas financeiras de tecnologia.
Para Meng, ao contrário dos bancos, essas organizações não prestam contas aos órgãos públicos dos reais donos do dinheiro que movimentam no país.
“O crime organizado tomou conta de todos os elos da cadeia produtiva de combustível. Mas nessa operação de hoje a gente vê a bancarização do crime organizado. Nós conseguimos perceber atrás da Receita Federal uma inteligência financeira por trás [do esquema]. Essa fintechs envolvidas bancarizaram dinheiro do crime organizado”, disse.
“E uma vez dentro do sistema financeiro, dificilmente algum de nós vai questionar quando recebe um bem de dentro do sistema, se ele está vindo de forma regular ou irregular. Isso é uma brecha regulatória muito sensível para todos nós”, declarou.
Marcia Meng e Robinson Barreirinhas, representantes da Receita Federal em São Paulo, durante coletiva de imprensa da megaoperação Carbono Oculto.
Montagem/g1/Reprodução/TV Globo
A representante da Receita Federal citou a série “Narcos”, da Netflix — que retrata a ascensão do Cartel de Medellín, na Colômbia, comandado por Pablo Escobar — para comparar como o PCC vem atuando no Brasil. Segundo ela, a facção estaria usando a combinação de fintechs e fundos de investimento imobiliário de forma semelhante às estratégias adotadas pelo cartel colombiano para movimentar dinheiro ilícito.
“A gente ainda tem a questão da blindagem patrimonial dentro do mercado de capitais. Esses fundos de investimento são fundos imobiliários. Eles não só ocultam quem é o real beneficiário daquele bem que está em um fundo imobiliário. Eles também fazem com que aquele capital passe a render”, afirmou.
“Se a gente olhar para o passado, em Narcos a gente conseguiu ver, que os antigos traficantes enterravam aquele dinheiro e ele perdia o valor. Era consumido pela umidade e perdido. Hoje, não, o crime organizado bancariza o dinheiro do crime organizado e coloca no mercado de capitais para render”, explicou Meng.
O secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, destacou que é preciso retomar a discussão da regularização dessas empresas no país com urgência.
“É preocupante essa bancarização. Nós dizemos que há um paraíso fiscal hoje no Brasil formado por fintechs mais os fundos de investimento agora. No momento que as fintechs não tem obrigações de transparência em relação, por exemplo, à Receita Federal, o que tem acontecido? As fintechs não têm agências bancárias. Então, o dinheiro entra ali por meio de contas bolsão dentro de instituições financeiras normais. Só que essa conta tá em nome da fintech, não do real destinatário”, explicou.
Wagner Moura como Pablo Escobar em cena da primeira temporada de ‘Narcos’
picture-alliance/AP/Netflix/D. Daza
“Nós não temos informações de quem é aquele titular do dinheiro. Só quem tem essa informação é a própria fintech. E a partir daí ela pega esse dinheiro e repassa para gestores de bens, que investem em algum fundo. Que é cotista único de outro fundo, que é cotista único de outro e outro fundo. Que injeta esse recurso no mercado de novo via empréstimo ou aquisição de debêntures. Essa empresa então tem a lavagem de dinheiro e adquire bens como mais de 1.500 caminhões, mais de 350 veículos leves que estamos vendo nessa operação”, afirmou Barreirinhas.
A Receita Federal diz que já identificou ao menos 40 fundos de investimentos (multimercado e imobiliários), com patrimônio de R$ 30 bilhões, controlados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Segundo o órgão, as operações aconteciam justamente no mercado financeiro de São Paulo, por integrantes infiltrados na famosa Faria Lima. Esses fundos de investimentos foram utilizados como estruturas de ocultação de patrimônio, afirmam os auditores federais.
A Receita Federal afirmou, ainda, que esses 40 fundos são fechados com um único cotista, geralmente com outro fundo de investimento, criando camadas de ocultação do dinheiro criminoso.
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Esses fundos financiaram a compra de um terminal portuário, quatro usinas produtoras de álcool (mais duas usinas em parceria ou em processo de aquisição), 1.600 caminhões para transporte de combustíveis e mais de 100 imóveis pelo Brasil.
Entre os bens adquiridos com dinheiro desses fundos também estão seis fazendas no interior de São Paulo, avaliadas em R$ 31 milhões, e uma residência em Trancoso (BA), adquirida por R$ 13 milhões.
A principal fintech investigada atuava como banco paralelo da organização criminosa e movimentou sozinha R$ 46 bilhões não rastreáveis no período.
As principais empresas alvos da operação são as seguintes:
Grupo Aster/Copape (donos de usinas, formuladoras, distribuidoras e rede de postos de combustíveis usada pela organização criminosa);
BK Bank (fintech financeira utilizada para movimentar dinheiro por meio de contas bolsão não rastreáveis);
Reag (fundo de investimento usado na compra de empresas, usinas e para blindagem do patrimônio dos envolvidos).
“Nós conseguimos a partir de hoje chegar nas pessoas certas, por uma séria de informações [compartilhadas]. A Receita Federal hoje é a maior empresa de inteligência de dados da América Latina e tem que estar a serviço dos outros órgãos da Segurança Pública e nós vamos fazer por cooperação”, disse Robinson Barreirinhas em coletiva de imprensa na sede do MP-SP, nesta quinta (28).
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Divulgação/Receita Federal
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De acordo com os auditores federais, essas empresas financeiras também financiavam outras companhias importadoras que atuavam na compra, no exterior, de produtos como nafta, hidrocarbonetos e diesel, com recursos de formuladoras e distribuidoras vinculadas à organização criminosa.
Esses produtos eram comercializados em uma rede de mais de 1 mil postos de combustíveis, que atuavam em dez estados brasileiros: São Paulo, Bahia, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Maranhão, Piauí, Rio de Janeiro e Tocantins.
“A maioria desses postos tinha o papel de receber dinheiro em espécie ou via maquininhas de cartão e transitar recursos do crime para a organização criminosa por meio de suas contas bancárias no esquema de lavagem de dinheiro. Somente entre 2020 e 2024, foram importados mais de R$ 10 bilhões em combustíveis pelos investigados”, dizem os auditores fiscais da Receita Federal.
“As formuladoras, as distribuidoras e os postos de combustíveis também eram usados para lavar dinheiro de origem ilícita. Há indícios de que as lojas de conveniência e as administradoras desses postos, além de padarias, também participavam do esquema”, completou o órgão.
Entre 2020 e 2024, a movimentação financeira desses postos foi de R$ 52 bilhões, com recolhimento de tributos muito baixo e incompatível com suas atividades.
Os postos já foram autuados pela Receita Federal em mais de R$ 891 milhões.
Cerca de 140 postos eram usados de outra forma. Eles não tiveram qualquer movimentação entre 2020 e 2024, mas, mesmo assim, foram destinatários de mais de R$ 2 bilhões em notas fiscais de combustíveis.
Possivelmente, essas aquisições simuladas serviram para ocultar o trânsito de valores ilícitos depositados nas distribuidoras vinculadas à organização criminosa, disse o órgão federal.
Infográfico: Como funcionava o esquema bilionário do PCC no setor de combustíveis
Arte/g1
Força-tarefa nacional
A megaoperação desta quinta-feira (28) é composta por três operações distintas, que ganharam os nomes de ‘Quasar’, ‘Tank’ e ‘Carbono Oculto’ (que tem a participação da Receita).
A força-tarefa nacional é composta por cerca de 1.400 agentes que cumprem mandados de busca, apreensão e prisão em oito estados brasileiros para desarticular um intrincado esquema criminoso no setor de combustíveis, comandado por integrantes do PCC.
Esquema de controle de fundos e fintechs da Faria Lima controlados pelo PCC, segundo a Receita Federal.
Reprodução/Receita Federal
Segundo as investigações, mais de 350 alvos – pessoas físicas e jurídicas – são suspeitos da prática de crimes contra a ordem econômica, adulteração de combustíveis, crimes ambientais, lavagem de dinheiro, fraude fiscal e estelionato.
As irregularidades foram identificadas em diversas etapas do processo de produção e distribuição de combustíveis no país. Os tentáculos do PCC no setor têm lesado não apenas os consumidores que abastecem seus veículos no Brasil, mas toda uma cadeia econômica ligada aos combustíveis.
As autoridades fazendárias estimam que o esquema criminoso sonegou mais de R$ 7,6 bilhões em impostos federais, estaduais e municipais.
A Operação Carbono Oculto é integrada por membros do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), Ministério Público Federal (MPF) – por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), da Polícias Federal, Civil e Militar de São Paulo.
Órgãos como Receita Federal do Brasil, Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, Agência Nacional do Petróleo (ANP) e Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PGE/SP) – por meio do Grupo de Atuação Especial para Recuperação Fiscal (GAERFIS) – também participam da megaoperação nesta quinta-feira (28).
O cumprimento dos mandados também tem ajuda dos Ministérios Públicos dos estados.
“A organização criminosa PCC está associada a uma rede de organizações criminosas, cujos vínculos são estabelecidos de forma permanente ou eventual, e convergente, de modo a assegurar a efetividade das atividades econômicas ilícitas, notadamente por meio da sua inserção na economia formal, como é o setor de combustível e o sistema financeiro”, dizem os membros do MP de São Paulo.
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