Encontro inédito de trisais no Brasil celebra o poliamor e reforça luta por reconhecimento; entenda diferentes tipos de relação


Encontro inédito de trisais no Brasil celebra o poliamor e reforça luta por reconhecimento
Tarde quente, piscina, churrasco e música. O ambiente descontraído de uma pousada do interior de São Paulo, tomado por conversas e risadas com diferentes sotaques, era um convite à liberdade, pois reuniu, por um final de semana, pessoas que romperam com a barreira do formato convencional das relações para celebrar o 1º Encontro de Trisais do Brasil.
Ao todo, 39 famílias poliamorosas, com diferentes formatos, seja triângulo, V ou rede (entenda abaixo), puderam se conhecer para, a partir desse movimento, amplificar a busca por reconhecimento e direitos como o reconhecimento da união poliamorosa.
“Uma pessoa sozinha não vai conseguir fazer essa mudança, mas muitos trisais juntos vão fazer com que as políticas públicas, o governo, enfim, consiga olhar para gente. A gente não tem hoje uma legislação que olhe para as famílias poliafetivas”, ressalta Thais Ventura, 40 anos, psicóloga clínica e presidente da Associação Brasileira de Famílias Poliafetivas.
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O g1 acompanhou a confraternização que ocorreu em Pinhalzinho (SP), cidade de 15 mil habitantes distante cerca de 120 km de São Paulo, e conversou com trisais de diferentes estados brasileiros sobre suas histórias e desejos.
“O amor em si não é para ser visto como um crime. Seu tenho a capacidade de amar mais de uma pessoa, se eu respeito essas pessoas que estão comigo, por que eu não posso botar num papel que eu quero que ele tenha os mesmos direitos?”, questiona Cristiane Martins Pereira Monteiro, de 41 anos, cantora de Fortaleza (CE) que vive um trisal há dois anos.
⬇️ Nesta reportagem você vai conferir:
1º Encontro de Trisais do Brasil
Triângulo, V, rede: o glossário das relações poliamorosas
‘Consideramos justa toda forma de amor’
Três é pouco…
O que essas famílias querem conquistar?
Quais as possibilidades de reconhecimento?
Pinhalzinho (SP) recebeu o 1º Encontro de Trisais do Brasil, que reuniu 39 famílias poliamorosas
Estevão Mamédio/g1
1º Encontro de Trisais do Brasil
Reunir tantas famílias poliafetivas de diferentes regiões do Brasil foi um trabalho logístico de meses, feito por um trisal de Pinhalzinho (SP), que compartilha sua rotina pelas redes sociais para 137 mil seguidores.
“Nunca a gente viu tantos trisais reunidos. A gente fala que é o primeiro do Brasil, para não errar, mas eu nunca soube disso nem no mundo”, destaca Priscila Mira, 41 anos.
Priscila vive ao lado de Marcel Mira, 42 anos, e Regiane Gabarra, de 36 anos, e formam uma família com quatro filhos. Foi pelas redes sociais que conheceram muitos outros trisais e famílias poliafetivas que se reuniram para celebrar e reivindicar pelo reconhecimento de suas existências.
“Além do ambiente seguro, acolhedor, tivemos um momento de fala para defender os direitos do poliamoristas, para lutar a favor dos nossos direitos”, diz Priscila.
Bem-humorado, Marcel gosta de desmistificar a ideia de que relações entre três ou mais pessoas tem apenas um viés sexualizado.
“É importante que a sociedade entenda isso, que a nossa relação, ela não se baseia apenas no que acontece dentro do quarto, não. Ela é do lar, ela é com os vizinhos, com a comunidade e eu acredito que a gente tem feito um bom papel com relação a isso. O dia a dia, ela só muda a questão de ter mais uma pessoa. Mas tem as divisões de tarefa, do mesmo jeito. Boleto pra pagar, é uma vida normal. Louça para lavar, roupa pra passar.”
Priscila, Regiane e Marcel formam um trisal, e atuaram na organização do 1º Encontro de Trisais do Brasil
Estevão Mamédio/g1
O encontro reuniu trisais e outros formatos de relações poliamorosas de diferentes estados, como Ceará, Bahia, Goiás, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais e, claro, São Paulo.
E o ambiente preparado para receber essas famílias na pousada em Pinhalzinho foi pensado para o acolhimento.
“Quando a gente chegou, tinha três toalhas, tinha três travesseiros na cama, porque sempre que a gente vai num hotel, em algum lugar, sempre tem duas, né? Mesmo a gente falando que vai ficar três adultos no quarto, sempre tem duas. Então, quando a gente chegou e tinha três, cara… E a gente não precisou se explicar, né? Foi maravilhoso”, conta Hassana Azanki, 23 anos, que faz parte do “Trisal Goiás”.
Hassana, Regislene e Erick, que formam o Trisal Goiás, destacaram o acolhimento da pousada que recebeu o 1º Encontro de Trisais do Brasil
Estevão Mamédio/g1
E o encontro foi festejado como uma forma de dar voz à pessoas como eles, e outras que ainda não assumem seus relacionamentos poliamorosos.
“Esse evento aqui, ele realmente é importante por conta disso. É necessário que a gente tenha os nossos direitos igualados, né? Nós somos seres humanos, nós não estamos fazendo nada além de amar”, afirma Camila Gonçalves, de 30 anos, de Salvador (BA).
🔺Triângulo, V, rede: o glossário das relações poliamorosas
Entre as 39 famílias presentes no 1º Encontro de Trisais do Brasil eram diversas as configurações de relacionamento. Trisais em “triângulo” e em “V” eram assuntos recorrentes nas conversas, na busca por entender como se estabelecia a relação afetiva entre eles.
Mas também havia dois casais em busca da terceira metade – os dois, aliás, participaram do reality do Globoplay que trata sobre relacionamentos amorosos -, além de uma família que vive em rede, a família Rocha, formada por um homem e quatro mulheres.
Priscila destaca que os trisais em triângulo e em V, além da relações abertas, são as mais comuns.
Entenda, abaixo, o que significa cada uma delas:
Triângulo
Nas relações em triângulo, os três membros se relacionam afetiva e/ou sexualmente entre si. Ou seja, é uma relação simétrica, onde cada pessoa tem vínculo direto com as outras duas.
Exemplo: A ama B e C; B ama A e C; C ama A e B.

Em V
Nos trisais em V, uma pessoa (o vértice) se relaciona com duas outras, que não têm vínculo entre si. É uma configuração assimétrica, onde o vértice gerencia dois relacionamentos paralelos.
Exemplo: A ama B e C; B ama A; C ama A; B e C não têm relação entre si.

Rede
A relação em rede envolve múltiplas pessoas com diferentes tipos de vínculos entre si. Pode incluir casais, triângulos, Vs e outras formas interligadas, com múltiplas conexões afetivas e/ou sexuais.

Relação aberta com múltiplos parceiros
Quando um casal ou grupo mantém vínculos primários, mas permite relações externas consensuais. Pode ou não haver envolvimento emocional com os parceiros externos.

Solo poliamor
A pessoa se identifica como poliamorosa, mas não vive em uma estrutura familiar fixa. Nesse caso, a pessoa mantém múltiplos relacionamentos independentes, sem formar uma “família” poliafetiva.

Polifamília
Grupo que vive junto ou compartilha responsabilidades familiares, como criação de filhos ou finanças. Pode incluir configurações em triângulo, V ou rede, mas com foco na convivência e estrutura familiar.
Família Rocha, de Atibaia (SP), vive uma união entre um homem e quatro mulheres
Estevão Mamédio/g1
‘Consideramos justa toda forma de amor’
“Consideramos justa toda forma de amor”. Embalados pelo verso famoso na voz de Lulu Santos, cantando a plenos pulmões à beira da piscina, os poliamoristas circulavam sem qualquer medo e receio na pousada, gozando da liberdade que todos deveriam ter em suas escolhas.
Até quem vive uma relação a três há 13 anos confirmou como era representativo ter espaço para poder viver com tranquilidade uma escolha amorosa. Mas reconhecem a dificuldade de entendimento, já que eles mesmos viveram esse impasse no começo da relação.
“A gente achava que era ET. A gente sofreu muita dificuldade com nós mesmos. Por não ter apoio de ninguém, de não saber que existiam mais pessoas dessa forma”, recorda Renaultt Câmara Chaveiro, de 39 anos, morador de Goiânia que vive um trisal em V com Jussimara, de 40 anos, e Vanessa, de 33.
Claiton, Cristiane e Gideon, de Fortaleza (CE), vivem um trisal em V
Estevão Mamédio/g1
Outro relacionamento de trisal em V é o de Cristiane Monteiro, que era casa com Antônio Gideon, de 45 anos, mas acabou apaixonada também por Claiton Ribeiro, de 36 anos.
“A gente vai fazer 25 anos de casal. Aí, em um momento da vida, eu conheci o Claiton. E eu falei: ‘olha, Gideon, eu conheci uma pessoa, e eu tô gostando dessa pessoa’. Eu não queria deixar nem um, nem outro. Eu continuei querendo ficar com ele como esposa. Afinal, a gente tinha uma história, né? Dois filhos, e não queria deixar isso por nada”, recorda Cristiane.
Contra qualquer tipo de preconceito, Gideon prega o amor e entendimento sobre as individualidades.
“A primeira reação quando as pessoas falam de trisal tem julgamento, crítica, depois pensa que é sacanagem. Não se coloca no lugar da gente, de saber que a gente tem sentimentos, tem respeito também”, diz Gideon.
Muitos dos trisais presentes estavam com seus filhos. Como era o caso da família de Salvador (BA), formada por Raian Almeida, Tamiris e Camila, que vivem em comunhão há quatro anos. E buscam uma forma de que o registro da criança tenha os nomes dos três.
“Participei do momento em que ele foi feito, estava presente na sala de parto, é meu filho e não tem ninguém que possa dizer nada contra. E aí, a partir do momento que o meu nome estiver incluso no documento dele, vai ser a realização realmente do sonho”, afirma Camila.
Raian, Tamiris e Camila (à dir.), que sonha com a inclusão do nome na certidão de nascimento do filho do trisal de Salvador (BA)
Estevão Mamédio/g1
Três é pouco…
Entre os presentes a maioria eram trisais, incluindo configurações apenas de homens e de mulheres, mas uma família, que segue em constante expansão, sempre era motivo de atenção e boas risadas.
Denominados “Família Rocha”, eles vivem em Atibaia (SP), mas no encontro, “apenas” três das mulheres estavam presentes.
Segundo Ivan José da Rocha, de 36 anos, há um acordo que o relacionamento, que agrega somente mulheres, tem como limite sete pessoas.
“A gente definiu como semiaberto, elas só agregam mais mulheres, até o limite de sete. Estabelecemos isso neste ano. Outros homens, não. Foi uma decisão particular delas”, conta Ivan.
Ao lado de Laís Rocha, 26 anos, com quem iniciou seu quinto casamento, e das demais companheiras, Ana Carolina, de 20 anos, e Natália, de 30 anos, a família contou que a ideia é construir uma nova casa para abrigar tanta gente – atualmente, vivem em um imóvel de oito cômodos.
“A gente tem um terreno de mil metros quadrados, que provavelmente vai ser a mansão dos Rochas”, brinca Ivan.
O “patriarca” conta que já trabalhou como motoboy, mas que agora boa parte da renda da família vem das redes sociais, e também de uma empresa de Laís.
Pinhalzinho (SP) recebeu o 1º Encontro de Trisais do Brasil, que reuniu 39 famílias poliamorosas
Estevão Mamédio/g1
O que essas famílias querem?
A busca é por direitos como o reconhecimento da união poliamorosa, o que permitira, por exemplo, desde compra de imóveis a segurança jurídica para divisão de bens e heranças.
“É uma luta por direitos básicos, dignos. Por exemplo, ter um convênio médico com todos os membros da família, conseguir fazer um vínculo numa academia para participar de um clube, até coisas maiores, como casamento, reconhecimento de filhos”, explica Thais Ventura, presidente da Associação Brasileira de Famílias Poliafetivas.
Thais espera que haja uma legislação que olhe para as famílias poliafetivas. “Esse direito é importante. Nossas famílias existem, resistem e vão continuar existindo”, afirma.
Marcel Mira crê em um processo de maturação da sociedade para esperar por um avanço dos direitos dos trisais e famílias poliamorosas.
“É um passo de cada vez, os nossos direitos, acredito que vão acontecer. Porque a sociedade ela é moldada dessa forma, conforme a gente vai evoluindo, ela vai se adaptando”, avalia.
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Trisal consegue reconhecer união estável na Justiça de SP apesar de veto do CNJ
Marcos Alves da Silva, diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), destaca que o “não reconhecimento das famílias poliamorosas é fruto de preconceito cultural e religioso, travestido de justificativas jurídicas”.
Para Silva, não deve haver interferência estatal na forma como as pessoas constituem família, ressaltando que a laicidade do Estado “é um princípio fundamental para garantir o pluralismo familiar”.
“Não proteger essas famílias significa um ato de exclusão e de discriminação indigno da Constituição, porque a Constituição se funda na dignidade da pessoa humana e na tutela da liberdade, e a liberdade ganha uma dimensão muito especial quando se trata da liberdade na sua dimensão existencial e coexistencial”, afirma.
O diretor do IBDFam avalia, no entanto, que não há qualquer sinal de avanço legislativo para garantir os direitos dessas famílias, mas acredita que a busca por reconhecimento jurídico, por meio de ações individuais ou coletivas, pode contribuir para a construção de uma jurisprudência que estenda os efeitos legais às relações poliamorosas.
“Nós temos que vencer o preconceito da negação da multiconjugalidade da mesma forma como existe multiparentalidade, também nós temos que admitir a multiconjugalidade, ou seja, todos têm o direito de formar a família da forma como bem entender”, completa.
Pinhalzinho (SP) recebeu o 1º Encontro de Trisais do Brasil, que reuniu 39 famílias poliamorosas
Estevão Mamédio/g1
Quais as possibilidades de reconhecimento?
Apesar de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ter proibido, desde 2018, o registro em cartório de uniões poliafetivas — envolvendo três ou mais pessoas —, a norma não impede que essas relações sejam reconhecidas judicialmente.
Como foi o caso da Justiça de São Paulo que reconheceu a união estável poliafetiva entre três homens em Bauru.
Claudia Catafesta, juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, explica que não cabe ao órgão. “O CNJ não amplia direitos nem subtrai, ele só regulamenta como vai ser feito”, explica.
Segundo a juíza, o CNJ tem uma atribuição de regulamentar o trabalho dos cartórios extrajudiciais, e também de organizar políticas públicas, “sempre pensando na fiscalização do poder judiciário e na atuação da magistratura do poder judiciário”, mas “sem nenhuma função jurisdicional.”
Claudia pontua que mudanças podem vir a partir de dois pontos:
Aprovação de lei no Congresso;
Decisão judicial robusta, especialmente do STF.
Ela destaca que a adoção de contratos privados entre pessoas em relações poliafetivas podem ter validade, mas essa decisão é do judiciário ao analisar caso a caso.
“As pessoas são livres para viver as suas formas de amar. O que ainda não foi definido no Brasil é o contorno jurídico disso”, destacou Claudia Catafesta, citando a ministra do STF, Cármen Lúcia.
Pinhalzinho (SP) recebeu o 1º Encontro de Trisais do Brasil, que reuniu 39 famílias poliamorosas
Estevão Mamédio/g1
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