Estradas invisíveis: a função dos rios na mobilidade e desenvolvimento de Manaus


Rio Negro chega a 27,56 metros e atinge cota de inundação em Manaus
Foto: Foto/Michel Castro, da Rede Amazônica
Diante das águas escuras do Rio Negro, Manaus se desenvolveu. O rio não serviu apenas como cenário para o nascimento da maior metrópole do Norte do Brasil, que nesta sexta-feira (24) completa 356 anos. Em uma realidade onde barreiras geográficas limitam e dificultam a locomoção por terra e ar, os rios são “estradas invisíveis” que moldam, sustentam e desafiam o transporte na capital amazônica.
Por meio deles, barcos e lanchas fazem o transporte de turistas, estudantes, trabalhadores e até pacientes, em especial na zona rural. É também via fundamental para o abastecimento de alimentos, combustíveis e mercadorias, além do escoamento do que é produzido na Zona Franca de Manaus (ZFM). Esse papel é antigo e foi se modelando com o passar dos anos.
Segundo o professor e especialista em história marítima, Dr. Caio Giulliano Paião, quanto mais abrangente tornou-se a circulação de mercadorias pela Amazônia, mais necessário ficou o estabelecimento de portos para organizar a circulação de pessoas e produtos.
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“Quanto mais sofisticadas e rápidas ficavam as embarcações, maior o impacto sobre a urbanização na Amazônia. Essa experiência também conta a história de como Manaus se conectou com outros povoamentos, que tiveram suas distâncias encurtadas quando os barcos ganharam motores”, diz.
A navegação na capital amazonense também contribuiu para o desenvolvimento urbano durante a Belle Époque – como é conhecido o período áureo da borracha em Manaus no início do Século XX. O historiador conta que a chegada das embarcações à vapor na época foi responsável por uma transformação profunda no modo de se viver a cidade.
“Jornais e livros de todo canto passaram a chegar com regularidade; companhias teatrais e musicais brasileiras e internacionais passaram a ter agenda em função da regularidade das linhas de navegação; marítimos espalharam pela cidade novos hábitos, como alimentos e bebidas, músicas e práticas esportivas, como boxe e capoeira”, conta Paião.
Até a jornada de trabalho e os horários do cotidiano urbano eram regidos pelo som dos barcos. “O apito do vapor era um alerta que colocava para funcionar toda a engrenagem urbana. Estamos falando de uma cidade que girava em torno do seu porto e dependia exclusivamente da navegação para se inserir nos mercados e se ouvir no mundo”.
Porto de Manaus no Século XIX
Arquivo/Instituto Durango Duarte
Mas nem só da grande navegação Manaus era movimentada. Os igarapés que cortam a capital também eram trafegados por embarcações de médio e pequeno porte.
“Uma multidão cruzava esses caminhos d’água todos os dias para trabalhar, para garantir algum sustento e para se divertir”, relembra o historiador.
O barqueiro Ronildo Monteiro diz lembrar bem do tempo em que os igarapés eram vivos. “Tinha o igarapé do Bolívia, aquele ali era show de bola. Agora não dá mais não, os caras poluíram muito, construíram muito prédio perto e ai vai desaguando tudo lá”, conta.
A relação com as águas que correm por Manaus virou trabalho. Há 15 anos, ele pilota lanchas para transporte de passageiros na Marina do Davi, Zona Oeste da cidade. O local é um ponto estratégico para os barqueiros que ganham a vida levando pessoas às dezenas de casas e estabelecimentos flutuantes no Lago do Tarumã.
Para ele, a mobilidade pelos rios esbarra em desafios como o período da seca, entre os meses de julho e outubro, e a poluição causada pelo crescimento desordenado na região.
“Se o dia for bom dá pra dar três viagens com 15 pessoas. No momento, como o rio tá seco, o movimento cai muito. Ano passado, na seca, ficamos quatro meses sem conseguir trabalhar. A gente fica dando um jeito mesmo sem renda. O lixo também atrapalha, mas de vez em quando tem um pessoal que dá uma limpada no final de mês”, conta.
Ronildo Monteiro é barqueiro há 15 anos.
Juan Gabriel/g1 AM
A cerca de 15 quilômetros de onde Ronildo trabalha fica o Porto de Manaus, maior porto fluvial do Brasil e principal porta para a entrada e saída de embarcações de passageiros em Manaus.
Segundo dados da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados e Contratados do Estado do Amazonas (Arsepam), o fluxo mensal de passageiros no transporte hidroviário intermunicipal de Manaus varia entre 58 mil e 90,6 mil pessoas em pouco mais de 11 mil viagens, mantendo essa média ao longo do ano.
Um desses passageiros é o aposentado Francisco Carvalho, de 64 anos. Natural de Óbidos, no Pará, ele vive em Manaus há mais de 30 anos e se prepara para visitar uma das filhas, que mora no município de Parintins.
Nos chamados “barcos de linha”, que fazem trajetos intermunicipais, a viagem dura cerca de 12 horas – tempo muito maior do que os pouco mais de 45 minutos que se leva para chegar ao mesmo destino de avião. Ao g1, ele conta que a escolher o rio como caminho é, principalmente, uma questão de economia.
“Prefiro ir de barco porque mesmo demorando mais, sai muito mais barato. Vai ver a passagem (de avião) tá custando uns R$ 800. Aqui eu ainda pago meia porque sou idoso”, conta ele, que reforça a paisagem natural como atrativo. “Fora que é mais tranquilo né? O cara arma a rede dele, tem ai essa beleza pra apreciar e pensar na vida”, conclui Francisco, apontando para o Rio Negro.
Rio Negro no Porto de Manaus.
William Duarte/Rede Amazônica
Avanço da urbanização afasta rio da vida cotidiana
De acordo com o historiador Caio Paião, ao longo do século XIX Manaus crescia margeando o Rio Negro e obedecendo ao curso de seus igarapés. O avanço da urbanização, no entanto, afastou o rio da vida cotidiana na capital.
“Quando o dinheiro passou a correr como nunca, a sanha de se parecer com uma grande metrópole levou as reformas urbanas a engolirem, e a continuar engolindo, tantas outras formas de civilização em detrimento de uma apenas.”
Os impactos deste crescimento estão diretamente ligados à problemas socioambientais como o assoreamento e redução de profundida do solo, conforme explica a vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Amazonas (CAU-AM), Melissa Toledo.
“A ocupação irregular às margens causa um desmatamento da mata ciliar, que é a vegetação que protege os rios. Sem essa proteção, o solo é levado pela chuva e acumula-se nos leitos dos igarapés, o que provoca o assoreamento, impactando na redução do volume de água e afetando a navegação”, explica a urbanista.
Outros problemas estão relacionados à poluição. “O crescimento urbano com ausência de saneamento adequado faz com que o esgoto doméstico e os resíduos sólidos sejam despejados diretamente aos rios e igarapés, cursores d’água”, completa Toledo, que aponta a educação ambiental e a necessidade de planejamento como soluções.
O rio e o transporte público
Reaproximar o rio ao dia a dia dos manauaras passa também pela possibilidade de integrá-los ao sistema de transporte público, a exemplo do que é feito em outras capitais como São Paulo, onde os chamados “ônibus-barcos” cruzam pontos diferentes da Zona Sul, podendo ser acessados com o mesmo bilhete único usado nos ônibus.
“É pertinente ao nosso contexto sim. Essa viabilidade de adaptação passa por estudar o rio, o eixo natural da cidade, estudar os igarapés, as possíveis rotas de transporte, estudar também aquilo que já foi uma rota informal para poder pensar em como seria”, opina Toledo.
Ela explica que, a grosso modo, pode ser viável interligar o Centro de Manaus a pelo menos outros cinco pontos em diferentes zonas da capital amazonense, mas seriam necessários:
📖 Estudos
🏗️ Ajustes técnicos
🔎 Análise de condições geograficas, sociais e ambientais
“Seria um transporte urbano fluvial, que é o intermodal. Agora, sem parar e estudar eu te diria que a gente tem o Centro da cidade que liga com a Ponta Negra. O Centro liga também com Educandos, São Raimundo, Colônia Antônio Aleixo, que consequentemente se liga com a Zona Leste, o Porto do Ceasa e o Distrito Industrial. Então se eu pegar esses pontos dentro da cidade, a gente já teria sim o começo de funcionamento de um intermodal, mas temos que sentar e estudar”, diz.
Os desafios de se pensar em projetos para integrar os rios ao transporte público na cidade de Manaus também passam pela infraestrutura portuária, falta de integração entre o transporte fluvial e o sistema terrestre, além dos fatores sazonais como a mudança do nível dos rios, pontua Toledo.
Enquanto a realidade não muda nos dias atuais, olhar para o futuro é sonhar com uma Manaus que abraça seus rios como parte da mobilidade urbana.
“Uma cidade que se move sobre a água mas vive com sustentabilidade, com a paisagem natural seria um caminho. Ai então seria uma cidade verdadeiramente amazônica, humana, inclusiva e sustentável”, conclui a urbanista.

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