Rudi Johnson sofria de encefalopatia traumática crônica (ETC).
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O ex-jogador de futebol americano Rudi Johnson, de 45 anos, foi encontrado morto nesta quarta-feira (24) em sua casa, na Flórida, Estados Unidos. Ídolo do Cincinnati Bengals, o running back sofria de encefalopatia traumática crônica (ETC), doença associada a traumas repetidos na cabeça. Segundo autoridades locais, a suspeita é de suicídio.
No Brasil, o diagnóstico também marcou a trajetória de dois grandes nomes do boxe: Éder Jofre e Maguila morreram em decorrência da doença. Ambos foram acompanhados pelo neurologista Renato Anghinah, professor de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e referência nacional no tema.
O que é a encefalopatia traumática crônica
A encefalopatia traumática crônica (ETC) é uma doença neurodegenerativa e progressiva causada por pancadas repetitivas na cabeça — mesmo as consideradas leves, como pequenas concussões.
Ao longo dos anos, esses impactos provocam lesões acumulativas nos neurônios e depósito anormal de proteínas no cérebro. O resultado é uma degeneração lenta que altera comportamento, humor, memória e funções cognitivas.
Ainda sem cura, a ETC é mais comum em atletas de esportes de contato, como boxe, futebol americano e artes marciais, mas pode atingir também vítimas de violência ou trabalhadores sujeitos a microtraumas contínuos.
Idades diferentes, manifestações diferentes
Renato Anghinah explica ao g1 que a ETC apresenta dois perfis distintos:
Em pessoas com menos de 50 anos, predominam alterações comportamentais: impulsividade, agressividade, sintomas depressivos e até risco de suicídio.
Acima dos 60 anos, o quadro se assemelha mais ao das demências tradicionais, com perda de memória, dificuldade de aprendizado e desorientação.
“É muito comum que jovens atletas sejam tratados inicialmente como pacientes psiquiátricos, enquanto os mais velhos recebem, por engano, diagnósticos de Alzheimer. Essa confusão atrasa o tratamento adequado”, afirma Anghinah.
ETC x Alzheimer: as diferenças
Embora ambas sejam doenças neurodegenerativas, a origem e o padrão de evolução são distintos.
No Alzheimer, a degeneração começa no hipocampo — região do cérebro responsável pela formação de novas memórias — e nas áreas temporais, afetando primeiro a memória recente.
Na ETC, as lesões aparecem no lobo frontal e na amígdala, regiões ligadas ao controle das emoções e do comportamento.
Segundo Anghinah, essa diferença ajuda a explicar o impacto da doença na vida social do paciente.
“A amígdala cerebral é responsável por reações viscerais, como medo e raiva. Já o lobo frontal funciona como um freio moral, controlando esses impulsos. Quando os traumas repetidos danificam essas áreas, a pessoa perde esse filtro social e passa a ter atitudes inadequadas, o que muitas vezes é confundido com distúrbios psiquiátricos”, explica.
Neurocirurgião pós-doutor pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Helder Picarelli reforça que os danos se acumulam lentamente.
“Os traumas repetidos machucam os axônios, que são como os galhos de uma árvore responsáveis por transmitir os sinais entre os neurônios. Com o tempo, esses galhos vão quebrando e secando, prejudicando toda a estrutura. É assim que o cérebro vai perdendo suas funções aos poucos”, compara.
Análises mostram que Éder Jofre tinha doença ainda pouco conhecida na medicina: a encefalopatia traumática crônica
Sintomas podem demorar a aparecer
Os sintomas podem levar 10 a 20 anos para aparecer após os primeiros traumas. Entre os mais comuns estão:
alterações de humor, como depressão e ansiedade;
perda de memória e dificuldades de concentração;
impulsividade e agressividade;
prejuízo no convívio social e no trabalho.
Diagnóstico correto é a chave para o tratamento
O diagnóstico definitivo da encefalopatia traumática crônica só pode ser feito após a morte, pela análise microscópica do tecido cerebral. Em vida, médicos recorrem ao histórico clínico, exames de imagem e testes neuropsicológicos, que ajudam a levantar a suspeita, mas ainda não oferecem confirmação absoluta.
Foi o que ocorreu com o tricampeão mundial Éder Jofre, morto em 2022. Sua família cumpriu o desejo dele de doar o cérebro para estudos, e o laudo confirmou ETC em grau 4, o estágio mais avançado da doença.
No caso de Maguila, os sintomas surgiram antes dos 50 anos e foram confundidos com Alzheimer. Após o ajuste da medicação, sob suspeita de ETC, houve melhora significativa na qualidade de vida do ex-pugilista.
Embora não exista cura, o tratamento adequado pode aliviar sintomas e prolongar o bem-estar. Neurocirurgião do Hospital Icaraí e coordenador de Fellowship Neuro Endovascular da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, Orlando Maia relembra que pesquisas já investigam formas de intervir na proteína tau, responsável pelo acúmulo em regiões do cérebro como o lobo frontal e o temporal.
“Ainda não existe cura, mas há estudos mirando essa proteína. Até lá, o tratamento é apenas sintomático, voltado a depressão, ansiedade e déficits cognitivos”, explica.
Para Anghinah, o ponto decisivo é acertar no diagnóstico: “Pela semelhança com outras demências, muitos pacientes com ETC recebem medicação para Alzheimer, o que pode agravar o quadro. Identificar corretamente a doença permite ajustar a conduta e oferecer mais qualidade de vida.”
Prevenção é essencial
A prevenção é considerada a principal estratégia para evitar o desenvolvimento da doença. Protocolos internacionais determinam o afastamento imediato de atletas após suspeita de concussão, além do uso de capacetes adequados e redução de treinos de contato. No Brasil, essas medidas ainda avançam lentamente.
O também neurocirurgião Murilo Martinez Marinho, da Sociedade Brasileira de Estereotaxia e Neurocirurgia Funcional, reforça que até choques aparentemente leves podem ter efeito cumulativo.
“Com o tempo, o cérebro vai acumulando pequenas lesões que comprometem memória, comportamento e funções cognitivas.”
Para Picarelli, reduzir a exposição é essencial:
“Não basta tratar depois. É preciso limitar os impactos, afastar atletas que sofreram concussões e reforçar o uso de equipamentos de proteção. A prevenção é a única forma real de frear a progressão dessa doença.”
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