Fantástico mostra detalhes da pesquisa que ganhou o prêmio Nobel de Medicina de 2022
Uma nova pesquisa sugere que o ambiente tóxico em que viveram nossos ancestrais pode ter pressionado a evolução do cérebro humano.
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Ao longo de milhões de anos, a exposição ao chumbo foi comum entre diferentes espécies que antecederam o ser humano moderno.
Com o tempo, isso pode ter favorecido indivíduos mais resistentes aos efeitos do metal, uma vantagem ligada a uma versão específica de um gene presente apenas no Homo sapiens.
Essa diferença genética, apontam os cientistas, pode ter ajudado o cérebro humano a se desenvolver de forma mais complexa, abrindo espaço para habilidades como a fala, a comunicação e a cooperação, características que nos distinguem de outros hominídeos.
“É isso que estamos propondo. Claro, é uma extrapolação dos dados experimentais, mas, até agora, ninguém tem evidências que contrariem essa hipótese. A ideia está colocada para ser testada e, se for o caso, refutada”, afirma ao g1 o cientista brasileiro Alysson Muotri, um dos autores do estudo e professor de Pediatria e de Medicina Celular e Molecular da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA).
“Enquanto isso não acontecer, ela permanece como uma das hipóteses que podem explicar o surgimento da linguagem humana”, acrescenta.
A pesquisa inédita analisou dentes fossilizados de diferentes espécies de grandes primatas — de Australopithecus e Homo primitivos a neandertais, além de grandes símios extintos como o gigantesco Gigantopithecus blacki.
O estudo, publicado nesta quarta-feira (15) na revista “Science Advances”, indica que nossos ancestrais já estavam expostos ao metal há pelo menos 2 milhões de anos, muito antes das atividades humanas passarem a disseminá-lo no ambiente.
As pistas dessa convivência antiga foram encontradas em linhas microscópicas preservadas em dentes, parecidas com os anéis de uma árvore.
🦷ENTENDA: cada camada dos nossos dentes funciona como uma cápsula do tempo. À medida que o esmalte e a dentina se formam, eles registram o que estava no ambiente naquele momento, minerais, nutrientes e até metais como o chumbo.
Como essas marcas permanecem intactas ao longo do tempo, os dentes acabam virando um registro fiel da vida de quem os teve.
E foi justamente nessas faixas que os cientistas encontraram concentrações variáveis de chumbo, o que leva a crer que esses indivíduos passaram por exposições sucessivas ao metal.
Ao todo, os fósseis vieram de três continentes: África, Ásia e Europa. Entre os achados mais impressionantes estão dentes de Gigantopithecus blacki, um macaco gigante que viveu na China há cerca de 1,8 milhão de anos.
Nessas amostras, os pesquisadores identificaram sinais claros de contaminação intensa e repetida por chumbo: marcas que se repetem em diferentes fases do crescimento dental.
O curioso é que esse mesmo padrão aparece em dentes de pessoas nascidas entre as décadas de 1940 e 1970, quando o metal ainda fazia parte do cotidiano: estava presente na gasolina, nas tintas de parede e até em encanamentos domésticos.
“Paramos de usar chumbo no nosso dia a dia quando percebemos o quanto ele é tóxico, mas ninguém nunca havia estudado o chumbo na pré-história”, diz Muotri.
Réplica de um crânio de neandertal e padrões de concentração de chumbo em um dente da espécie: as áreas em vermelho indicam níveis mais altos do metal.
UC San Diego Health Sciences
Muito antes das fábricas e dos carros, o metal, por exemplo, já fazia parte da rotina humana e chegou até a deixar marcas no Império Romano, quando era usado em aquedutos, utensílios e até no vinho.
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Estudos modernos apontam que essa contaminação afetou boa parte da população da época, mas agora, os fósseis revelam que essa relação tóxica é, na verdade, muito mais antiga do que se imaginava.
Segundo o estudo, mesmo sem fábricas ou tubulações, a Terra já oferecia riscos naturais: erupções vulcânicas, poeira, solos e água que corria por cavernas podiam carregar chumbo em níveis elevados.
A hipótese é que nossos ancestrais procuravam cavernas com nascentes internas, e a água contaminada acabava ingerida por famílias inteiras.
O pesquisador Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego, investigou como a exposição ao chumbo pode ter influenciado a evolução do cérebro e da linguagem humana.
Kyle Dykes/UC San Diego Health Sciences
Minicérebros em laboratório
Para investigar se essa exposição prolongada a substâncias tóxicas pode ter influenciado a evolução do cérebro humano, os cientistas também criaram em laboratório minúsculos “minicérebros”, ou organoides, produzidos a partir de células-tronco humanas.
Esses modelos simulam estágios iniciais do desenvolvimento neural e foram cultivados com duas versões do mesmo gene: o NOVA1, que regula a formação das conexões entre neurônios.
A versão “moderna”, presente em todos os Homo sapiens, difere da “arcaica”, exclusiva de neandertais e denisovanos, por apenas uma letra no DNA, uma alteração mínima, mas suficiente para mudar a forma como os neurônios se organizam.
Essa diferença pode ter desempenhado um papel decisivo na maneira como o cérebro humano responde a toxinas e se adapta ao ambiente ao longo da história evolutiva.
Os organoides foram então expostos a pequenas doses de chumbo. E o resultado surpreendeu: a versão antiga do gene mostrou-se muito mais vulnerável, afetando diretamente a expressão do FOXP2, o gene associado à fala e à linguagem, o mesmo que, quando sofre mutações, causa distúrbios da fala em crianças.
Já a versão moderna do NOVA1 pareceu agir como um escudo, reduzindo o impacto do metal sobre as redes neurais.
“A estrutura dos organoides era idêntica em tudo, exceto por aquela única variação genética, o que nos permitiu investigar se essa mutação específica entre nós e os neandertais poderia ter nos dado alguma vantagem”, explicou Muotri.
Mapa e imagens mostram como os cientistas identificaram chumbo em dentes fósseis. O laser (B) revela faixas coloridas (C) que registram a contaminação ao longo da vida — como anéis de uma árvore.
Joannes-Boyau et al./Science Advances
“Se todos os humanos modernos compartilham essa mutação, em todas as partes do mundo, é sinal de que uma forte pressão evolutiva deve ter favorecido sua seleção em nossa espécie.”
Os resultados levantam uma hipótese ousada: a exposição ao chumbo pode ter atuado, ao longo da evolução, como uma espécie de filtro natural, favorecendo indivíduos com maior resistência ao metal.
Em outras palavras, o Homo sapiens teria herdado um ajuste genético capaz de proteger o cérebro e, de quebra, preservar duas das habilidades que nos tornaram únicos: a linguagem e a cooperação.
Em termos evolutivos, isso significaria uma vantagem poderosa. A fala e a comunicação são consideradas chaves para o surgimento de sociedades complexas.
“A linguagem é a nossa superpotência”, resumiu Muotri. “Ela nos permitiu organizar grupos, trocar ideias e construir civilizações. Talvez os neandertais tivessem pensamento abstrato, mas não conseguiam compartilhá-lo com a mesma eficiência.”
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Luisa Rivas e Ana Moscatelli | Arte g1
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