As letras que têm nomes diferentes no ‘ABC do Nordeste’
Desde a década de 1950, Luiz Gonzaga já cantava:
🎶 “Lá no meu sertão (…) têm que aprender um outro ABC
O jota é ji, o éle é lê
O ésse é si, mas o érre
Tem nome de rê.”
O trecho faz parte da música “ABC do Sertão”, composta em parceria com Zé Dantas, e fala de uma “variante” do abecedário em que algumas letras têm nomes diferentes.
É o caso de 8 consoantes:
F – éfe – fê
G – gê – guê
J – jota – ji
L – éle – lê
M – ême – mê
N – êne – nê
R – érre – rê
S – ésse – si
Mas, apesar da idade e do nome da canção, esse ABC nem é do sertão e nem está tão esquecido quanto pode parecer.
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Ainda hoje, o também chamado ABC do Nordeste é usado em alguns lugares do país. Inclusive, não é possível limitá-lo apenas ao Nordeste.
Além disso, apesar de ser menos conhecida, essa versão não é menos oficial. Muitos dicionários até apresentam os dois nomes para essas letras.
Novo Dicionário Aurélio apresenta dois nomes para a letra G – gê e guê.
Emily Santos/g1
A variante também é muito utilizada em escolas no processo de alfabetização por ser considerada mais fácil, já que a lógica do nome das letras é semelhante ao das demais consoantes.
Para a professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Liane Castro “Lica” de Araújo, faz sentido que a versão seja utilizada em sala de aula.
“Algumas letras têm sons diferentes em palavras diferentes. A letra C pode ser som de S ou som de K a depender da sílaba. Às vezes, podem ter sons diferentes na mesma palavra, como o S em ‘siso’”. explica.
O ABC do Nordeste na alfabetização
Leila Lago é professora de educação infantil da Rede Municipal de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, e trabalha as duas versões do alfabeto na sala de aula. Ela opina que o abecedário nordestino é mais prático para o momento inicial de alfabetização.
No começo, o ABC nordestino é muito mais fácil de ensinar às crianças. Ele torna o processo de alfabetização muito mais fácil por conta do princípio acrofônico (entenda mais abaixo). Ensinar que é ‘guê de gato’ faz mais sentido do que falar ‘gê de gato’.
Ela conta que, atualmente, muitas crianças já chegam na sala de aula com algum conhecimento das letras, seja por conta de músicas infantis populares ou mesmo por contato com outras pessoas que lhes ensinam o alfabeto.
A professora Ana Paula Capistrano compartilha da mesma opinião e da experiência. Ela, que leciona na rede municipal de Salvador, prioriza o abecedário nordestino na sala de aula por ser o mais popular na capital baiana.
Além disso, se ensinamos ‘Bê, Cê, Dê’, mas chegamos no F e chamamos de ‘Éfe’, a criança pode ter mais dificuldade do que se falamos ‘Fê’, que segue a mesma lógica das outras consoantes.
E a confusão acontece, segundo as docentes.
“Tem aluno que pergunta: ‘tia, por que o nome da letra M começa com E?’, e aí eu explico que a letra tem dois nomes e que ele pode falar como achar melhor”, Ana Paula explica.
Apesar disso, ela diz que, a partir do momento em que as crianças estão familiarizadas com as letras e seus sons, elas conseguem fazer as associações por conta própria. “Por isso, é mais provável que falem ‘gê de girafa’”.
Isso remete aos conceitos de grafema e fonema, ensinados no ensino fundamental.
Fonema é a menor unidade sonora da língua. É o aspecto que estuda o som, e não corresponde necessariamente a uma letra. Um exemplo é o Š, que pode ser do X em xícara, do S H em show, ou de C H em chuva.
Já grafema é a representação escrita desse som, e é aqui que entram as letras.
Por isso, as professoras comentam que faz sentido que algumas letras tenham mais de um nome.
Mas, afinal, qual é a história desses dois alfabetos?
O princípio acrofônico do alfabeto
Desde os primeiros agrupamentos de letras que originaram o nosso alfabeto, como no caso do alfabeto cananeu ou Proto-Cananeu, do século 17 a.C, e do alfabeto fenício, de 15 a.C, os nomes das letras já indicavam seu som. Isso é chamado de princípio acrofônico.
Quando o alfabeto grego modernizou e organizou o sistema de letras, a lógica permaneceu. O fenício Aleph tornou-se Alfa, Beth virou Beta, Ghimel tornou-se Gama, e assim sucessivamente. Inclusive, foi da junção das duas primeiras letras gregas que surgiu a palavra “alfabeto”.
“Naquela época, as letras tinham nome, mas o som dela era representado apenas pela letra inicial. Foi isso que os latinos consideraram quando fizeram o próprio alfabeto. ‘Se o que importa é a primeira letra, vamos manter apenas ela’”, explica Lica de Araújo, que estuda o tema desde 2019.
Assim, surgiu o abecedário, que, com algumas mudanças pontuais — como a adição das letras K, W e Y em 2009 — é o que conhecemos e usamos atualmente.
Sobre as duas versões dos nomes das letras como falamos no Brasil, pouco se sabe a respeito.
“Atualmente, não existe um corpo de material que embase por completo a origem dos nomes das letras do nosso alfabeto, especialmente do ABC do Nordeste”, diz a pesquisadora.
O que se sabe é que veio de Portugal, no período do Império, indicações em manuais e materiais didáticos que indicavam que as letras deveriam ser chamadas por nomes mais próximos do seu som, então, em vez de ‘mala’ ser ‘ême-a-éle-a’, passou a ser ‘mê-a-lê-a’.
Segundo a professora, o material foi amplamente distribuído pelo país, inclusive com ajuda do Abílio César Borges, barão de Macaúbas, educador e entusiasta pedagógico brasileiro do século 19.
“O que não sabemos é se houve alguma determinação posterior que ajudou na popularização da versão mais usada hoje, e também por que o conhecimento e o costume pelo uso da outra versão sobreviveu centrada no Nordeste”, completa ela.
É a esse tema que a professora tem se dedicado em uma pesquisa que já dura 6 anos, e que deve virar um livro no futuro. “Como sabemos pouco sobre o tema atualmente, eu quero ir a fundo, buscar bons argumentos para fundamentar essa discussão e defender a legitimidade linguística do nosso ABC”.
Por que o nome de algumas letras começam com ‘E’
Parte da pesquisa de Lica de Araújo é para entender a origem da versão de alguns dos nomes das letras que começam com E.
“A lógica criada para chamar algumas consoantes com esse E antes — como Éfe (F), Érre (R) — era uma lógica que tem a ver com os tipos de consoantes. Seguindo a mesma regra, o V e o Z que entraram depois no alfabeto deveriam ser chamados de ‘Éve’ e ‘Éze’”, ela argumenta.
De acordo com ela, isso acontece porque a regra foi aplicada em consoantes não oclusivas.
Consoantes oclusivas: B, C (antes de A, O e U), D, G (antes de A, O e U), K, P, Q e T. São aquelas que criam e rompem uma barreira total de ar quando faladas. Essa barreira pode ser nos lábios (B e P), entre a língua e os dentes (D e T), na glote, mais ao fundo da boca (G e K). Também são chamadas de consoantes explosivas.
As demais consoantes — C (antes de E e I), F, G (antes de E e I), H, J, L, M, N, R, S, V, X, W, Y e Z — pertencem a outras categorias e, portanto, poderiam ser afetadas igualmente pela regra, o que não aconteceu.
“Isso não quer dizer que a regra é arbitrária ou que os nomes das letras não são válidos. Só significa que temos maneiras diferentes de falar seus nomes, e tudo bem. É mais do que uma questão cultural ou de variação linguística regional. É todo um modo de fala que existe, que é utilizado, e é legítimo”, finaliza a pesquisadora.
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