Fermento natural caseiro para fazer pão com base científica


O consumo de pão de fermentação natural está em alta.
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O consumo de pão de fermentação natural está em alta. Basta ver o aumento de padarias e pontos de venda que usam esse tipo de pão como chamariz. Os consumidores o identificam como um produto de maior qualidade e mais saudável. Mas será que isso é mesmo verdade?
Embora ainda faltem estudos mais rigorosos e comparáveis, as pesquisas realizadas indicam que, em geral, um pão de fermentação natural é mais digerível, provoca picos menores de insulina no sangue, contém menos compostos prejudiciais (ácido fítico, acrilamida, glúten ou FODMAPs que causam desconfortos intestinais), sacia mais, dura mais tempo, é mais crocante e tem melhor sabor.
E de que tudo isso depende? Além do uso de boas técnicas de panificação com farinhas integrais de qualidade e de uma fermentação prolongada, está diretamente ligado à comunidade microbiana que se desenvolve no fermento natural.
Diferentemente dos pães industriais — em que farinha e água são misturadas a levedura comercial e a massa é fermentada pelo menor tempo possível antes de ir ao forno —, nos pães de fermentação natural a levedura é substituída, total ou parcialmente, por uma mistura de microrganismos vivos presentes no fermento natural, aos quais se dá tempo suficiente para se multiplicarem e cumprirem sua função.
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Os gênios do pão
Obter um fermento natural de cultivo em casa não é difícil: misturamos farinha e água, deixamos em local morno e alimentamos diariamente até que ele dobre de volume e fique acidificado. É o chamado fermento natural do tipo I.
O que acontece nesse processo? Permitimos que os microrganismos presentes na farinha, na água, nas mãos e/ou no ambiente se multipliquem, impondo-se na mistura aqueles mais adaptados. Esses microrganismos são leveduras, bactérias lácticas e, em menor quantidade, bactérias acéticas, que dão ao pão de fermentação natural suas características principais. Esses microrganismos são considerados seguros (QPS segundo a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, EFSA), pois nos ajudam a fazer pão há milhares de anos.
A levedura mais comum nos fermentos naturais é a Saccharomyces cerevisiae, embora, para o pão, usem-se cepas diferentes das que ajudam a produzir vinho ou cerveja e das leveduras comerciais usadas na panificação industrial. Há também leveduras não convencionais, como Kazachstania exigua e Kazachstania humilis, adaptadas a esse ambiente. Elas realizam a fermentação alcoólica, convertendo os açúcares da farinha em dióxido de carbono — o gás que faz a massa crescer — e em etanol, que evapora durante o forno.
A bactéria láctica mais associada a fermentos naturais é a Fructilactobacillus sanfranciscensis (antes chamada Lactobacillus sanfranciscensis), embora outras, como Lactiplantibacillus plantarum, Companilactobacillus crustorum e Limosilactobacillus fermentum, também sejam comuns. Elas realizam a fermentação láctica, convertendo os açúcares da farinha em ácido láctico e ácido acético (responsáveis pela acidez da massa), dióxido de carbono e etanol. Em menor quantidade, encontram-se bactérias acéticas dos gêneros Acetobacter e/ou Gluconobacter, que consomem etanol e glicose produzindo, respectivamente, ácido acético e ácido glucônico.
Relações estreitas que dão sabor
A associação desses três grupos de microrganismos no fermento natural se dá graças às relações estabelecidas entre eles, que favorecem combinações de indivíduos capazes de resistir ao ambiente ácido, não competir pelos mesmos substratos para se multiplicar e, em alguns casos, fornecer nutrientes uns aos outros.
Outros fatores — como tipo e qualidade da farinha, água, temperatura e ambiente — também são essenciais. Tudo isso contribui para a grande diversidade dos fermentos naturais usados na panificação.
Cuidando das nossas “mascotes” microscópicas
Em casa, com paciência e constância, obtém-se um fermento natural robusto, pronto para ser usado no pão. Se não for utilizado todo, é preciso decidir como conservá-lo.
A opção mais simples é mantê-lo na geladeira a 4 °C. A baixa temperatura reduz a atividade dos microrganismos, mas os afeta de forma diferente conforme sua tolerância ao frio. Outra possibilidade é o congelamento a −20 °C. Assim, ele poderá ser mantido por mais tempo, embora a viabilidade das leveduras seja menor. Em ambos os casos, antes de utilizar o fermento como ingrediente do pão, é necessário reativá-lo com alguns ciclos de alimentação e verificar se ele consegue fazer a massa crescer e acidificá-la.
Padarias que mantêm seu próprio fermento natural tipo I costumam alimentá-lo diariamente para a produção de pão, mas também podem conservá-lo pelos métodos anteriores.
Outra alternativa é comprar fermento natural de empresas especializadas, que desenvolveram formatos mais duráveis e manuseáveis para conservação e distribuição. O método mais comum é a liofilização: o fermento é convertido em pó e pode ser armazenado à temperatura ambiente por anos. Nesse formato (tipo III), o fermento é comercializado inativo e, embora adicionado à massa traga acidez, aromas e sabores diferentes dos pães feitos apenas com levedura comercial, ele não oferece as vantagens do metabolismo de microrganismos vivos agindo sobre a massa.
Pecuária microbiana
Produzir fermento natural é um tipo de “pecuária” em escala microscópica: multiplicamos microrganismos para uso posterior, como ocorre em outros alimentos fermentados — iogurte, queijo, azeitonas, presunto, embutidos, vinho, cerveja. Em todos eles, a comunidade microbiana é essencial.
No caso do fermento natural, nos beneficiamos tanto do que esses microrganismos fazem (fazer a massa crescer) quanto do que degradam (glúten, ácido fítico, outras proteínas, açúcares etc.) e do que produzem (vitaminas, ácidos, aminoácidos, compostos antifúngicos etc.) para obter um alimento nutritivo e saudável, que se conserva melhor sem aditivos. Consumir esse pão é ter em casa ou na padaria um “laboratório” natural e vivo de microrganismos não patogênicos que podem nos acompanhar por toda a vida.
O uso do fermento natural também está associado ao valor do fazer artesanal e tradicional, que respeita o tempo necessário para obter um produto de qualidade e costuma utilizar insumos de proximidade e de baixo impacto ambiental.
Em suma, o fermento natural para panificação é mais um exemplo do papel essencial que os microrganismos desempenham em nossa vida.
*Belén Floriano é professora titular da área de Microbiologia na Universidade Pablo de Olavide.
*Andrés Garzón Villar é professor de Genética na Universidade Pablo de Olavide.
**Este texto foi publicado originalmente no site do The Conversation Brasil.

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