Flip Couto fala sobre trajetória na cena ballroom e Bienal Sesc de Dança


Ball do Tempo – Bienal de Arte de São Paulo. Foto – Cintia Rizoli

Artista, curador e referência na cultura ballroom brasileira, Flip Couto compartilhou em entrevista exclusiva sua trajetória marcada por resistência, arte e ativismo. Aos 41 anos, o dançarino e performer negro, vivendo com HIV, faz parte da curadoria da 14ª Bienal Sesc de Dança, que acontece de 25 de setembro a 5 de outubro em Campinas.
“É um florescimento”, define Flip ao ver a cultura ballroom e seu Coletivo AMEM ganharem protagonismo na Bienal Sesc de Dança, considerado um dos eventos mais importantes de dança do Brasil.
“A gente vê uma semente que foi plantada há alguns anos, foi regada, cuidada, podada algumas vezes para crescer melhor. A gente vê uma continuidade, uma crescente da cultura ballroom em vários lugares, festivais, tanto nas artes visuais, na moda, na beleza, na dança”, comenta Flip Couto, curador convidado da Bienal Sesc de Dança.
Cultura ballroom: memória, títulos e luta
Flip Couto. Foto – Henrique Fernandes

Flip explica que a cultura ballroom é estruturada em casas e articulações comunitárias, com pilares como raça, gênero e performatividade. Os títulos, como legendary e icon, são concedidos a figuras que contribuem significativamente para a cena e servem para preservar a memória desses idealizadores, que criaram e fomentaram a comunidade.
Em 2021, Flip recebeu o título de legendary por seu trabalho com HIV/AIDS e pelo pioneirismo na produção de balls no Brasil.
“Desde 2017, venho aplicando produção cultural dentro da cultura ballroom, dialogando com instituições como o Sesc e promovendo visibilidade para pessoas vivendo com HIV”, afirma.
Hip-hop, preconceito e criação de espaços seguros
A trajetória de Flip começou no hip-hop, ainda em 1999. “Sempre fui o único gay em todos os rolês”, relembra. Ele comenta que sofreu preconceitos de várias formas, seja direto ou velado, recreativo de ser alvo de piadas e risadas, como quando dançava breaking nas ruas de São Paulo.
O desejo de criar um espaço de liberdade e afeto levou à criação da Festa AMEM, em abril de 2016, voltada à comunidade LGBTQIAPN+. Aos poucos, ele conseguiu incluir a presença da diversidade nas line-ups.
Flip Couto relembra que, no início, era difícil reunir diversidade, mas com o tempo artistas importantes passaram por lá, como Glória Groove e Manauara Clandestina. Além disso, nomes como Félix Pimenta, Micaela Cyrino, Isis Vergilio, Natasha Vergilio, Biel Lima e DJ Rodz se tornaram parte do movimento, trazendo diferentes linguagens artísticas e fortalecendo a coletividade.
“Foi criando uma comunidade. Em dezembro de 2016, fizemos o Fervo PositHIVo, edição especial sobre HIV e comemorativa ao Dia Mundial da AIDS. Isso marcou uma identidade forte na festa AMEM, além da negritude e da diversidade, a questão do HIV e da saúde da população negra”, detalha Flip.
No ano seguinte, a Festa AMEM cria a primeira edição da ball VERA VERÃO e da Parada Preta, representando as pessoas negras, periféricas e outras incidências da comunidade. O Coletivo AMEM nasce de fato quando completa um ano, promovendo debates, festas e ações dentro das programações.
Coletivo AMEM – Ball do Tempo – Bienal de Artes de São Paulo. Foto – Cintia Rizoli

Flip Couto relata que o maior impacto de seu trabalho é servir como referência para pessoas vivendo com HIV, cujas experiências são frequentemente silenciadas. Ele defende que espaços como festas podem ser também ambientes de saúde, cura e acolhimento, permitindo que essas pessoas compartilhem suas subjetividades e construam relações afetivas dentro da comunidade.
“Flip, uma bicha preta de 41 anos, vivendo com HIV, trabalhando com arte, tendo suas relações, conseguindo falar sobre isso, conseguindo elaborar essas dores também para transformar em arte”, se descreve.
Dança como cura e transformação
Para Flip, a dança é mais que expressão artística — é cura. “A dança de rua vem da rua como espaço de conhecimento, formação intelectual, encontros. Cada passo é uma busca por cura, seja da transfobia, do racismo ou da AIDS”, complementa.
“Frequentemente eu preciso tratar de casos de racismo e outros preconceitos. A cura é uma pauta permanente no movimento AIDS, principalmente pessoas que vivem com HIV”, afirma o artista.
O artista abordou o HIV em sua performance autoral “Sangue”, que parte de memórias familiares e da cultura negra urbana. Inspirado pelo Soul Train e pelas danças de rua, ele usa o baile como metáfora para trocas e silêncios vividos por pessoas negras LGBT. A obra também reflete sobre espaços marginalizados, como saunas e pontos de pegações, e sobre o impacto social do HIV, conectando o tema à necropolítica e à saúde da população negra.
Ele destaca a importância de espaços como a Bienal para ampliar o acesso à arte e à discussão sobre saúde, negritude e diversidade.
“A curadoria vem muito forte nesse sentido. A minha formação intelectual vem de rua. Falam danças urbanas, mas eu gosto muito de falar da dança de rua, por trazer a rua mesmo como espaço de conhecimento, espaço de formação intelectual, espaço de encontros, de encruzilhadas (…) A dança de rua carrega em si essa energia do cotidiano, por estar na rua e vestir a rua também”, diz.
Flip Couto descreve a dança de rua como uma expressão profundamente conectada ao cotidiano. Desde os trajetos até os encontros, tudo influencia a criação artística. De acordo com o curador, a obra e o público estão em constante diálogo e os espaços urbanos (praças, escolas e festas) são palcos para essas danças.
Para ele, manifestações como o samba, o frevo e o maracatu se transformam conforme os acontecimentos da comunidade, refletindo o presente e suas emoções.
Flip Couto. Foto – Henrique Fernandes

Campinas e a força da comunidade negra
Flip tem uma relação antiga com Campinas, desde batalhas de hip-hop na Estação Cultura em 2005. Hoje, ele celebra o fortalecimento da cena artística negra periférica na cidade.
“Campinas tem uma memória escravocrata forte, mas também um movimento artístico negro periférico potente”, enfatiza.
A conexão com a comunidade campineira se intensificou após a Bienal Sesc de Dança de 2019, quando Flip e o Coletivo AMEM inspiraram lideranças locais com performances que misturavam dancehall, hip-hop e cultura ballroom.
“Então, eu já vinha muito para cá (Campinas). E agora, mais recente, junto à comunidade ballroom, tem esse diálogo muito forte. A Casa de Odara vai estar presente na programação desta edição. É uma casa que eu acompanho desde o início. Inclusive, a Diameyka Odara, que é a liderança, encontra a cultura e brilha os olhos quando vê a performance do Coletivo AMEM no ponto de encontro”.
Para ele, o trabalho da equipe educativa é essencial para acolher dúvidas e promover trocas. Flip enaltece o fato da Bienal ser um espaço acessível, de convivência e pertencimento, incentivando até quem vem de fora a fazer um bate-volta para vivenciar a programação.
“Acho que vai ser um lugar de estar mesmo. Estou falando para as pessoas de outras cidades, vem nem que seja para chegar de manhã, ver o espetáculo, almoçar, ver outro espetáculo, tomar um suco, ficar conversando com pessoas. Acho que também é uma forma de fazer uma Bienal aqui em Campinas”.
Flip Couto. Foto – Henrique Fernandes

Representatividade e futuro
“Eu gosto muito de falar sobre esse poder do corpo recoreografar os espaços. Esses espaços que têm uma coreografia da opressão, da normatividade, como que, cada vez mais, essa presença de corpos transmasculinos, corpos transvestis, corpos indígenas, ocupando uma comedoria, um teatro, uma fila, vai gerar um outro movimento. Eles ocupam espaços e transformam o mundo”.
Flip sonha com mais diversidade nas curadorias artísticas.
“Torço para que futuramente tenhamos uma travesti, um transmasculino, uma pessoa indígena como curador. Isso nos dá a oportunidade de conhecer outros mundos”, cita.
“Cada vez mais. Quanto mais ter escuta, quanto mais ter o poder de escolha, de decisão, acho que é uma coisa que vai transformando. Eu, enquanto uma pessoa negra na curadoria artística da Bienal Sesc de Dança, estou vendo uma transformação”, enfatiza o artista.
Ao ver sua comunidade ocupando espaços de destaque na Bienal, Flip se emociona.
“Essas pessoas têm talento, construíram carreira. Que isso se transborde para outros festivais no Brasil e no mundo”, finaliza.
Onde posso comprar ingressos da Bienal Sesc de Dança?
A 14° edição da Bienal Sesc de Dança conta com atividades gratuitas e com valores a partir de R$ 12. Os ingressos estão disponíveis pelo site, app e nas unidades do Sesc SP.
Para mais informações sobre a 14ª Bienal Sesc de Dança, acesse o site sescsp.org.br/bienaldedanca.

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