Médico agredido em UPA relembra episódio: ‘Socos descolaram minha retina, passei meses vendo flashes’


Violência contra médicos cresce 68% em 10 anos; enfermeiros também são vítimas
O médico Pablo Henrique de Araújo Leal voltou animado ao trabalho depois de um mês de férias. Naquele dia, em dezembro de 2023, ele estava escalado para o plantão em uma unidade de pronto atendimento (UPA) em Águas Lindas de Goiás, cidade do Entorno do Distrito Federal que enfrentava uma explosão de casos de dengue.
“Na cidade, de 300 mil habitantes, havia apenas um hospital e uma UPA”, lembra o médico. “A gente atendia mais de 100 pacientes por turno”.
Uma paciente, que havia sido internada menos de cinco dias antes com diagnóstico de dengue, chegou de cadeira de rodas por volta das 11h. Em estado grave, Pablo conta que ela foi atendida em cerca de oito minutos — da chegada até a prescrição.
“Ela tinha sintomas compatíveis com dengue grave. Colocamos em prática o protocolo do Ministério da Saúde para casos como esse, de prescrever hidratação intensa com soro”, relata. Dali, foi encaminhada para a sala de medicação.
Ao perceber que a dor não melhorava, o marido da paciente voltou ao consultório e questionou o médico. “Mesmo diante da superlotação, eu a reavaliei duas vezes. Falei que estávamos seguindo o protocolo e aumentei a medicação. Ela mesma disse que a dor tinha melhorado um pouco”, conta o médico.
Mas a situação se agravou. A paciente, segundo ele, arrancou o acesso venoso, gritou, chutou a parede. “Quando voltei ao consultório, ela estava deitada na maca, com sangue no chão. Disse que ainda sentia dor. Falei que acreditava nela, que ia aplicar nova medicação, mas precisava que ela colaborasse.” O médico então providenciou a transferência para a sala vermelha — área para os casos mais críticos. Às 13h, deixou de vê-la.
“Três horas depois, uma pessoa abriu a porta do consultório. Achei que fosse um paciente perdido. Senti, então, três socos: dois no olho e outro no ombro. Não entendi nada até que ele gritou ‘ela morreu, ela morreu, ela morreu’”.
O agressor era o marido da paciente. A pancada provocou um corte no olho, que levou a um descolamento parcial da retina.
“Fiquei vendo flashes por três meses. O ombro também foi lesionado. Fiz fisioterapia por quatro meses.”
O clima no hospital estava tenso desde o começo do dia, de acordo com Pablo. Pacientes irritados devido à superlotação começaram a questionar médicos e enfermeiros de foram ostensiva. Sem segurança na unidade, o maqueiro recebeu a função improvisada.
“Quando o homem me agrediu, ele foi o primeiro a sair correndo”, conta.
Na delegacia, Pablo registrou boletim de ocorrência e fez exame de corpo de delito. O agressor foi liberado no mesmo dia, mas o caso foi parar na Justiça.
Pablo Leal, médico agredido por marido de paciente.
Arquivo Pessoal
“Meu nome foi pra lama”
A morte da paciente gerou uma onda de ataques contra o médico. “O advogado do marido foi à imprensa dizer que eu a mandei calar a boca. Mentira. Se eu tivesse feito isso, ele me agrediria na hora, não quatro horas depois.”
Pablo passou a ser acusado de negliência. “Meu nome foi pra lama. Os pacientes pesquisam e encontram só isso sobre mim.”
Sem proteção institucional e com medo de novos ataques, o médico deixou o posto. “Nunca mais voltei. Outros colegas também saíram. A verdade é que só continua trabalhando em lugares assim quem não tem opção.”
Laudo confirma ruptura no fígado
O laudo da necropsia saiu apenas em maio de 2025, e isentou o médico de negligência. A causa da morte: ruptura hepática — uma complicação gravíssima da dengue.
“É raro, mas acontece. Mesmo que tivéssemos tomografia –o que não tínhamos naquela unidade– talvez não desse tempo. E lá não havia sequer centro cirúrgico”, explica.
O Ministério Público arquivou o caso. Em seu parecer, reconheceu que “as condutas seguidas pelo médico foram compatíveis com os protocolos do Ministério da Saúde” e que “tudo o que poderia ser feito foi feito”.
Apesar do reconhecimento oficial, Pablo precisou reconstruir sua trajetória. Hoje, trabalha em um hospital fechado, sem portas abertas. “O paciente é atendido em outro hospital e, se precisar, é encaminhado. Não quero mais passar por aquilo.”
“Ou o médico demora demais ou atende rápido demais”, desabafa. “E ninguém vê os verdadeiros culpados. Só sobra pra quem está lá, tentando fazer o que dá, sem as ferramentas certas.”
Violência contra médicos é crescente
Casos como o de Pablo não são isolados. Segundo dados do Conselho Federal de Medicina (CFM), ao menos um médico sofre algum tipo de agressão a cada duas horas no Brasil. As ocorrências incluem ameaças, lesões, injúrias e até mortes dentro de unidades de saúde. A entidade alerta que a sobrecarga de trabalho e a falta de segurança contribuem para o cenário.

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