O que 5 redações nota mil do Enem têm em comum? Professores analisam ‘segredos’ dos textos


Redações nota mil no Enem: repertórios culturais
Quais os segredos das redações nota mil do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)? O g1 selecionou um exemplo de sucesso de cada ano, de 2020 em diante, e pediu para professores traçarem um raio X desses textos:
Como os alunos usaram os repertórios culturais?
De que forma eles demonstraram coerência e coesão?
Quais ingredientes escolheram para a conclusão perfeita, com proposta de intervenção adequada?
Veja abaixo os destaques mencionados pelos especialistas. Os temas foram os seguintes:
2020 — O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira (exemplo selecionado: Aline Soares – PB)
2021 — Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil (exemplo selecionado: Emanuelle Severino – MG)
2022 – Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil (exemplo selecionado: Ana Alice Azevedo – RJ)
2023 – Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil (exemplo selecionado: Catharina Ferreira – SP)
2024 – Desafios para a valorização da herança africana no Brasil (exemplo selecionado: Anna Beatriz Veríssimo – RN)
📺REPERTÓRIO CULTURAL
A competência II [veja mais abaixo] da redação do Enem exige que o participante utilize repertórios socioculturais relacionados ao tema para embasar seus argumentos: filmes, livros, autores, músicas, reportagens… Devem ser citações pertinentes ao assunto tratado, bem contextualizadas e articuladas com o restante do texto.
📝O problema é que alguns candidatos vêm adotando uma estratégia considerada problemática pelo Inep: eles memorizam determinadas referências (como um artigo da Constituição Brasileira ou um poema de Drummond) para usá-las em absolutamente qualquer tema proposto. Na prática, isso leva a textos genéricos, pouco aprofundados e sem citações pertinentes.
No Enem 2025, a orientação para evitar os chamados “repertórios de bolso” veio explícita na Cartilha do Participante. “Se o(a) avaliador(a) perceber que o repertório foi inserido de forma decorada, automática ou forçada, ele(a) pode avaliá-lo como não produtivo, o que poderá prejudicar a nota da competência II”, diz o documento.
“É evidente para os professores de redação e para os que trabalham efetivamente na correção do Enem que, a cada ano, ocorre um refinamento dos critérios e um maior rigor da banca quanto aos textos de excelência”, diz Márcia Pelachin, coordenadora de Redação do Colégio Rio Branco (SP).
Veja como, nos exemplos “nota mil” abaixo, os candidatos acertaram nas escolhas:
✏️ Anna Beatriz Veríssimo (RN)
Redação de Anna Beatriz Veríssimo no Enem 2024
Reprodução
Trechos:
Introdução: “‘Na obra literária ‘Torto Arado’, Itamar Vieira retrata uma comunidade quilombola na fazenda Água Negra, na Bahia, relatando aspectos socioculturais relevantes para essa população afrodescendente, como os rituais religiosos e os saberes tradicionais passados pelas gerações. Fora da ficção, é nítido que a sociedade brasileira não valoriza a herança africana presente desde a histórica formação nacional. Essa problemática da invisibilidade decorre da mentalidade colonial eurocêntrica, bem como da lacuna educacional no tocante ao resgate da cultura afro-brasileira.”
1º parágrafo do desenvolvimento: “Dado o exposto, pode-se considerar a persistência de ideais eurocêntricos como empecilho para o reconhecimento do vasto legado africano no país, uma vez que tais formas de conhecimento são estigmatizadas em detrimento da valorização dos costumes hegemônicos dos colonizadores. Tal questão pode ser verificada sob o conceito de “racismo estrutural”, cunhado pelo antropólogo Silvio Almeida, em razão da naturalização do racismo em diversas esferas, a exemplo da linguagem e do uso de expressões como “magia negra” para vincular um sentido negativo ao que é negro. Dessa forma, o pensamento de desvalorização da herança africana se materializa no cotidiano, conforme denunciado por Almeida, e distancia a nação do desejo de aprender acerca dos costumes e valores africanos, ao atribuir estereótipos de desqualificação a esses saberes, o que aprofunda o óbice.”
Análise:
“A redação de Anna Beatriz sobre herança africana é exemplar nesse quesito: traz o livro ‘Torto Arado’, de Itamar Vieira Junior, que dialoga diretamente com o tema; o conceito de ‘racismo estrutural’, do antropólogo Silvio Almeida; a Lei de Diretrizes e Bases; e ainda menciona personalidades negras como Machado de Assis e o abolicionista Luiz Gama”, afirma Thiago Braga, professor do gestor da área de Linguagens do Colégio e Curso pH.
“É um repertório completamente pertinente, que não apenas enriquece o texto, mas estrutura a própria argumentação.”
✏️ Aline Soares (PB)
Redação nota 1.000 de Aline Soares Alves, PB
Arquivo pessoal
Trechos:
1º parágrafo: “O filme O Coringa retrata a história de um homem que possui uma doença mental e, por não possuir atendimento psiquiátrico adequado, ocorre o agravamento do seu quadro clínico. Com essa abordagem, a obra revela a importância da saúde psicológica para um bom convívio social. Hodiernamente, fora da ficção, muitos brasileiros enfrentam situação semelhante, o que colabora para a piora da saúde populacional e para a persistência do estigma relacionado à doença psicológica. Dessa forma, por causa da negligência estatal, além da desinformação populacional, essas consequências se agravam na sociedade brasileira.”
3º parágrafo: “Nota-se, outrossim, que a desinformação na sociedade é outra problemática em relação ao estigma dos distúrbios mentais. Nesse aspecto, devido à escassez de divulgação de informações nas redes sociais sobre a importância da identificação e do tratamento das doenças psicológicas, há a relativização desses quadros clínicos na sociedade. Desse modo, como é retratado no filme “O Lado Bom da Vida”, o qual mostra a dificuldade de inclusão de pessoas com doenças mentais na sociedade, parte da população brasileira enfrenta esse desafio. Com efeito, essa parcela da sociedade fica à margem do convívio social, tendo em vista a prevalência do desrespeito e do preconceito na população. Nesse cenário, faz-se necessária uma mudança de postura das redes midiáticas.”
Análise:
No Enem 2020, Aline Soares escolheu duas obras cinematográficas para escrever sobre o estigma associado a transtornos mentais: “Coringa” e “O Lado Bom da Vida”.
“Isso ampliou o alcance interpretativo do texto e demonstrou intertextualidade cultural produtiva”, afirma Marilurdes Cruz Borges, do curso de Linguística da Universidade de Franca.
Cláudia de Fátima Oliveira, da mesma instituição, dá detalhes:
o uso de “Coringa” na introdução já apresenta o tema e fundamenta a tese sobre negligência estatal e desinformação social;
“O Lado do Bom da Vida” aparece no desenvolvimento como um exemplo complementar.
“Os filmes não substituem a argumentação: eles a enriquecem. Esse uso é exemplar para a Competência 2, pois é pertinente, legitimado e produtivo”, afirma a docente.
✏️ Ana Alice Azevedo (RJ)
Trecho da Redação do Enem de Ana Alice de Souza Azevedo.
Reprodução
Trecho:
Introdução: “Na primeira fase do Romantismo, os aspectos da natureza brasileira e os povos tradicionais foram intensamente valorizados nas obras, criando um movimento ufanista em relação a características nacionais. Tal quadro de valorização, quando comparado à realidade, não foi perpetuado, apresentando preocupantes desafios para a exaltação das comunidades nativas na contemporaneidade. Nesse sentido, a problemática não só deriva da inércia estatal, mas também do descaso social.”
Análise:
“Ana Alice, no texto sobre povos tradicionais, também impressiona ao mobilizar o Romantismo brasileiro, especificamente sua primeira fase ufanista, criando um contraponto histórico interessante: a valorização das comunidades nativas já existiu na cultura brasileira e precisa ser retomada”, diz Braga.
🔃COERÊNCIA E COESÃO
Redações nota mil no Enem: coerência e coesão
“A clareza organizacional é marca registrada dos textos nota mil”, explica o professor Braga. Ele cita o exemplo de Emanuelle Severino (2021), cuja introdução contrasta a cidadania na Grécia Antiga com a realidade brasileira. Isso cria uma base conceitual sólida antes da discussão sobre causas e consequências da falta de registro civil. Veja:
Redação nota mil da candidata Emanuelle Severino, de Belo Horizonte
Divulgação
Trecho: “A cidadania, no contexto relativo à Grécia Antiga, era restrita aos homens aristocratas, maiores de vinte e um anos, que participassem do sistema político de democracia direta do período. Diferentemente dessa conjuntura, a Carta Magna do Estado brasileiro, vigente na contemporaneidade, concede o título de cidadão do Brasil aos indivíduos nascidos em território nacional, de modo que a oficialização dessa condição está atrelada ao registro formal de nascimento. Nesse contexto, convém apresentar que, em virtude da ausência dessa documentação, diversas pessoas passam a enfrentar um quadro de invisibilidade frente à estrutura estatal e, com isso, são privadas da verdadeira cidadania no país.”
Já a redação de Catharina (2023), sobre a desvalorização do trabalho de cuidado, foi elogiada pela “organização exemplar e progressão temática precisa”, segundo professoras da Universidade de Franca. A estudante relaciona o contexto capitalista à personagem Macabéa, de A Hora da Estrela, articulando causas econômicas e culturais da invisibilidade social.
Note como o 2º parágrafo introduz, desenvolve e conclui o primeiro argumento:
Trecho da redação nota mil de Catharina Ferreira no Enem 2023
Reprodução/Inep
Trecho: “A princípio, o prestígio social de um trabalho é um fator importante para a determinação de seu reconhecimento e remuneração. Nesse raciocínio, atividades de cuidado são estigmatizadas dentro do corpo social como inferiores e descriminalizadas pelo seu baixo nível de escolaridade. Isso acontece, pois com a predominância do capitalismo no ocidente e a Revolução Tecnológica introduzida a partir da 3ª Revolução Industrial no mundo contemporâneo, houve a crescente valorização de serviços de alto grau de especialização e nível acadêmico. Dessa forma, atividades de baixo ou nenhum valor tecnológico, como o trabalho do cuidado ou tarefas domésticas, foram socialmente marginalizadas em escala global.”
“Essa redação sobre o trabalho de cuidado é um ótimo exemplo de argumentação bem organizada e aprofundada. Nota-se que em cada parágrafo a aluna desenvolve uma única ideia, de forma clara e pertinente ao tema”, observa Marina Rocha, professora do Colégio AZ.
Outro recurso essencial para alcançar a nota mil é o uso de conjunções (como “dessa forma”, “além disso”) para manter a coesão do texto. Veja como Catharina emprega o recurso de forma natural:
“Entretanto, nota-se, na comunidade brasileira, a invisibilidade desse serviço e seu protagonismo majoritariamente feminino.”
“Dessa forma, atividades de baixo ou nenhum valor tecnológico, como o trabalho do cuidado ou tarefas domésticas, foram socialmente marginalizadas em escala global.”
“Portanto, é necessária a aplicação de medidas para o enfrentamento da desvalorização do trabalho de cuidado no Brasil.”
“A distribuição equilibrada dos conectores e a retomada de termos-chave na conclusão consolidam o encadeamento temático. O resultado é um texto coeso, coerente e planejado, que demonstra domínio das relações lógicas entre as partes e atende plenamente às exigências das competências 3 e 4”, analisam as professoras da Universidade de Franca.
Essa habilidade está prevista na Competência 4, sobre mecanismos linguísticos adequados na argumentação.
E atenção: o Inep pede que o candidato use “variados operadores argumentativos” e recursos que garantam o encadeamento de ideias. Mas não há motivo para decorar expressões do século XIX. É possível usar conjunções e expressões variadas, dentro de um repertório mais próximo ao atual.
Veja um trecho da Cartilha do Participante:
Inep reforça que não há a necessidade de usar elementos coesivos em excesso
Reprodução/Inep
🤝PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO
Redações nota mil no Enem: proposta de intervenção
Na conclusão, a missão principal é elaborar uma proposta de intervenção completa, pensada para solucionar o problema proposto naquela edição da prova. Portanto, é necessário:
apresentar argumentos que defendam uma tese
e, no fim do texto, escrever uma ideia de como solucionar a questão.
Essa proposta deve definir:
a ação: qual é a iniciativa sugerida?
o agente: quem deve executar a ação?
o meio de execução: de que forma o “projeto” vai ser colocado em prática?
a finalidade: qual é o objetivo?
o detalhamento: que outra informação pode ser acrescentada para esmiuçar a proposta?
Os textos nota mil apresentam planos detalhados e viáveis, como o de Aline:
“Portanto, vistos os desafios que contribuem para o estigma associado aos transtornos mentais, é mister uma atuação governamental para combatê-los. Diante disso, o Ministério de Saúde [AGENTE] deve intensificar a criação de atendimentos psiquiátricos públicos [AÇÃO], com o objetivo de melhorar a saúde mental da população e garantir o seu direito [FINALIDADE]. Para tal, é necessário um direcionamento de verbas para a contratação dos profissionais responsáveis pelo projeto [MEIO DE EXECUÇÃO], a fim de proporcionar uma assistência de qualidade para a sociedade [DETALHAMENTO]. Além disso, o Ministério das Comunicações deve divulgar informações nas redes midiáticas sobre a importância do respeito às pessoas com doenças psicológicas e da identificação precoce desses quadros. Mediante a essas ações concretas, a realidade do filme O Coringa tão somente figurará nas telas dos cinemas.” (Aline Soares)
“A redação de Aline sobre saúde mental apresenta duas propostas, o que é raríssimo e mostra domínio absoluto da competência V”, diz Thiago Braga.
O Inep, na Cartilha do Participante, faz um alerta: “Evite propostas vagas, genéricas ou incompatíveis com a discussão, bem como estruturas que não permitam ter certeza de que você está propondo, de fato, uma intervenção”.
Se você optar por apresentar mais de uma solução, tudo bem! Apenas uma delas necessita cumprir todos os itens da listinha acima. E não se esqueça de respeitar os direitos humanos ao sugerir uma iniciativa (ou seja, não ferir a dignidade, a igualdade, a laicidade do Estado, a democracia e o princípio de sustentabilidade ambiental).
Em 2021, Emanuelle sugeriu unidades móveis de cartório que atendessem semanalmente comunidades sem acesso a registro civil.
“Diante do exposto, conclui-se que o registro civil é um aspecto intrínseco à cidadania no Brasil. Por isso, o Governo Federal deverá propiciar a acessibilidade das populações mais carentes, que sofrem com a falta de acesso à documentação, a esse tipo de serviço, por meio da articulação de unidades móveis para os cartórios do país. No que tange a esse aspecto, os veículos adaptados transportarão os funcionários dos órgãos de registros até as áreas de menor renda “per capita” de seus respectivos municípios, um dia por semana, com o intuito de realizar o procedimento formal de emissão dos documentos de nascimento dos grupos sociais menos favorecidos economicamente. Desse modo, um maior número de brasileiros acessará, efetivamente, a condição de cidadão.” (Emanuelle)
Já Anna Beatriz (2024) dividiu responsabilidades entre o Executivo, o Congresso e o Ministério da Educação, propondo políticas de valorização da cultura africana:
“Portanto, é preciso reconhecer e valorizar a herança africana no Brasil. Para isso, o Governo Federal, em parceria com as secretarias estaduais de educação, deve ampliar as campanhas de valorização da cultura africana, sob um viés afrocentrado, por meio de votação entre deputados e senadores — responsáveis pela aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA) —, com a finalidade de combater a visão eurocêntrica presente na sociedade, promovendo o aprendizado da história sob a ótica dos afrodescendentes. (…)” (Anna Beatriz)
“A menção à Lei Orçamentária Anual revela conhecimento técnico impressionante”, elogia Braga.
Competências exigidas na redação
Competência 1 – Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa.
Competência 2 – Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.
Competência 3 – Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.
Competência 4 – Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.
Competência 5 – Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

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