Metanol em bebidas: só teste de laboratório pode detectar
A ingestão de bebidas adulteradas com metanol pode parecer inofensiva nas primeiras horas, mas rapidamente evolui para um quadro grave, com risco de cegueira e morte. O processo é traiçoeiro porque o organismo interpreta o metanol de forma semelhante ao etanol — o álcool encontrado em bebidas comuns — e só revela sua toxicidade quando já está em plena ação.
Primeiras 12 horas: sintomas discretos e enganosos
De início, a intoxicação por metanol se parece com a de uma bebedeira comum. O paciente pode sentir náuseas, dor abdominal, tontura e dor de cabeça. Muitas vezes, os sintomas são leves, o que retarda a procura por atendimento médico.
Segundo Luis Fernando Penna, gerente médico do Pronto Atendimento do Hospital Sírio-Libanês, mesmo nesse estágio inicial o fígado já está trabalhando. A substância começa a ser metabolizada pela enzima álcool desidrogenase — a mesma que atua sobre o etanol — em duas etapas: primeiro em formaldeído e depois em ácido fórmico — os verdadeiros agentes tóxicos.
“Nas primeiras horas ainda há muito metanol intacto circulando, mas a conversão já se inicia”, explica o médico.
É justamente essa “falsa calmaria” que engana: enquanto a vítima sente apenas mal-estar inespecífico, os exames de sangue já podem indicar alterações, como aumento do chamado osmolar gap (um índice que denuncia a presença de álcool tóxico) e queda dos níveis de bicarbonato — sinais de que o organismo caminha para uma acidose metabólica.
“O metanol em si não é tão tóxico quanto seus metabólitos. A pessoa pode se sentir como numa embriaguez comum e até achar que melhorou. Mas, à medida que o fígado converte a substância, começam a se acumular os compostos tóxicos. É nesse momento que surgem os sintomas graves, como alterações visuais e confusão mental”, acrescenta Igor Mochiutti, infectologista do Hospital Metropolitano Lapa.
Até 24 horas: o fígado fabrica o veneno e os olhos sofrem primeiro
Com a progressão, surgem os sintomas mais característicos. “O fígado funciona como um laboratório: ele tenta transformar o metanol em água eliminável, mas nesse caso o resultado são produtos muito piores, como formaldeído e ácido fórmico”, explica Indianara Brandão, médica hematologista da Faculdade de Medicina do ABC e diretora da Clínica First.
O ácido fórmico é altamente tóxico porque inibe a produção de energia nas mitocôndrias das células. Tecidos que demandam mais energia — como os nervos e a retina — são os primeiros a sofrer. Entre 12 e 24 horas após a ingestão, é comum aparecer visão borrada, fotofobia e até a sensação de enxergar pontos luminosos, descrita como “chuva de pixels”.
“O nervo óptico sofre duplamente: pela falta de energia das mitocôndrias e também pela degeneração das fibras nervosas e da bainha protetora, o que pode levar à perda visual irreversível em pouco tempo”, afirma Igor Mochiutti, infectologista do Hospital Metropolitano Lapa.
Além disso, instala-se a acidose metabólica, uma condição em que o sangue fica excessivamente ácido. Isso leva a respiração acelerada, fraqueza, confusão mental e sobrecarga no coração e nos pulmões.
Infográfico: o impacto do metanol no corpo humano.
Arte/g1
Até 48 horas: risco de cegueira e falência múltipla
Se não tratado, o quadro evolui para complicações graves em até dois dias. O ácido fórmico atinge de forma agressiva o sistema nervoso central, podendo causar convulsões, rebaixamento de consciência, coma e arritmias cardíacas.
De acordo com Penna, esse é o ponto em que a perda visual pode se tornar irreversível. “Não há um relógio exato, mas a combinação de acidose profunda e lesão estabelecida do nervo óptico marca um limiar de pior prognóstico”, afirma.
Nesse estágio, os danos deixam de ser apenas metabólicos ou neurológicos e avançam para uma falência sistêmica. Coração, pulmões e rins entram em colapso progressivo, consequência direta da acidose metabólica severa e da sobrecarga tóxica. É nesse momento que o risco de morte se torna elevado e, mesmo com tratamento, as chances de reversão caem drasticamente.
Por que o metanol engana o corpo
A confusão entre etanol e metanol acontece porque ambos são álcoois de cadeia curta e disputam a mesma enzima no fígado. O organismo “não distingue” entre eles na primeira etapa do metabolismo. A diferença é que o etanol gera acetaldeído, que depois vira ácido acético (um composto processável pelo corpo), enquanto o metanol gera ácido fórmico — muito mais tóxico.
“Esses casos mostram que o fígado não é só um filtro, ele é também uma biofábrica. Normalmente, ele nos protege. Mas, no caso do metanol, ele fabrica o próprio veneno”, resume Indianara Brandão.
Os especialistas alertam que cada hora conta. Quanto mais cedo for iniciado o tratamento, maiores as chances de reverter os danos neurológicos e visuais. Passadas 48 horas sem intervenção, as possibilidades de recuperar a visão diminuem drasticamente.
O tratamento para intoxicação por metanol inclui o uso de antídotos como o fomepizol — que bloqueia a enzima que inicia a metabolização tóxica — ou o próprio etanol, que compete pela mesma via enzimática. Em casos graves, é necessária a hemodiálise para remover rapidamente o metanol e seus metabólitos.