Ataque ocorreu no fim da madrugada de domingo (16).
O indígena Jânio Kaiowá, da Assembleia Geral do povo Kaiowá e Guarani, informou em redes sociais que se reuniu com o relator da Organização das Nações Unidas (ONU), Albert K. Barume, durante a COP30 em Belém (PA). O encontro ocorreu após o ataque armado à Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I, em Iguatemi (MS), que resultou na morte do indígena Vicente Fernandes Vilhalva, de 36 anos.
Durante a reunião, lideranças relataram a escalada da violência no território e a ausência de medidas de proteção. A comunidade também destacou que a falta de demarcação aumenta sua vulnerabilidade. “Ainda não sei quantas lideranças vão morrer por lutar por seus territórios”, afirmou Jânio.
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A Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) e o Comitê de Laudos Antropológicos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) manifestaram preocupação com os ataques às comunidades Kaiowá de Pyelito Kue e Mbarakay e pediram investigação dos casos e providências das forças de segurança pública e órgãos de direitos humanos. Confira a nota na íntegra ao final desta reportagem.
Famílias relatam pânico e destruição
Uma liderança da comunidade Pyelito Kue, que preferiu não se identificar, disse ao g1 que cerca de 60 famílias foram surpreendidas por tiros disparados por homens armados, apontados como pistoleiros.
“No local há crianças com deficiência, mulheres desmaiaram de susto. O que aconteceu foi cena de guerra, parecia filme de terror. Queimaram nossos barracos, alimentos. Deixaram pessoas feridas gravemente”, relatou.
Segundo a liderança, a área é reivindicada pelos Guarani e Kaiowá e já passou por estudos de identificação: “Fomos delimitados. A área já foi identificada e aprovada pelos estudos. Falta baixar a portaria.”
Ele acrescentou que a luta pelo território dura mais de 16 anos: “Queremos poder cultivar, plantar, cuidar dos animais, trabalhar. Desde 2013 estamos isolados aqui. Mesmo no nosso território, não vivemos felizes. Temos nossa casa, mas não temos a chave. Não querem entregar a chave”.
A Força Nacional acompanha a região desde 3 de novembro, mas não permanece no local o tempo todo.
“Estamos aqui para tudo. Sabemos da sobrevivência dos povos. Estamos acostumados a viver assim. Nunca fomos ouvidos”, completou.
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Como ocorreu o ataque
Segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), cerca de 20 homens armados vindos de fazenda próxima cercaram a área e abriram fogo. Barracos foram destruídos e ao menos quatro pessoas ficaram feridas. Vicente Fernandes Vilhalva foi atingido na cabeça e morreu no local; o corpo passou pelo Instituto Médico Legal (IML) antes de ser liberado para a comunidade.
A Funai informou que este foi o quarto ataque desde 3 de novembro, em meio a conflitos fundiários envolvendo retomadas Guarani e Kaiowá. O órgão contabiliza oito indígenas feridos nesses episódios recentes.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que acompanha o caso e destacou a importância da demarcação para reduzir a violência.
Um indígena foi preso em flagrante pela Polícia Federal; a motivação da prisão não foi detalhada.
Ações das autoridades
Equipes da Força Nacional, Polícia Federal e Funai foram acionadas após os disparos. O Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que a Força Nacional mantém patrulhamento contínuo na região para prevenir novos confrontos.
Ao chegar ao local, a Força Nacional encontrou três vítimas — duas feridas e uma morta — e reforçou o patrulhamento.
A Polícia Federal investiga a morte de um trabalhador rural na mesma região, ocorrida no domingo, mas afirmou que ainda não é possível relacionar os casos.
O coordenador regional da Funai em Ponta Porã, Tonico Benites, disse nesta segunda-feira (17) que “não houve ataques hoje e os indígenas permanecem no local”.
O g1 entrou em contato com a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), que não quis se manifestar. O g1 também tentou contato com o Sindicato Rural de Iguatemi, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
Nota na íntegra da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
“Na madrugada do dia 04 para 05 de novembro de 2025, as comunidades indígenas Kaiowá de Pyelito Kue e de Mbarakay, no cone sul do Mato Grosso do Sul, ao tentarem retornar aos territórios de ocupação tradicional de onde haviam sido expulsas, viram-se novamente alvo de ataques a tiros, pela segunda vez em menos de três dias.
Ambas comunidades já haviam tentado retornar aos seus territórios em 2012, quando se tornaram protagonistas de uma resistência a ataques armados, que mobilizou a opinião pública na campanha com o mote “Somos todos Kaiowá”. Após esta mobilização, a Terra Indígena Iguatemipegua I, que engloba os tekoha (ou seja, as terras) de Pyelito Kue e de Mbarakay, foi reconhecida oficialmente pelo Estado, em publicação no D.O.U. em 2013. Porém, até o momento encontra-se sem ser demarcada.
Passados doze anos daquela publicação oficial e sem verem avançar os meios formais para voltar a ocupar seus tekoha (lê-se “tekorrá”), as comunidades decidiram não esperar mais e voltaram.
É de fundamental importância ter em conta que para as comunidades Kaiowá (lê-se “kaiová”) seus tekoha são seus suportes de vida, que lhes foram entregues na origem do mundo pelas divindades, para que dela fizessem bom uso e cuidassem.
A vida, portanto, fora dos tekoha é uma subvida, geradora de perturbações e de doenças, tanto nos indivíduos que compõem estas comunidades quanto nelas próprias, coletivamente. Acresce-se a isto o uso indiscriminado de agrotóxicos nas monoculturas de exportação que as cercam, poluindo-se as águas e os cultivos dos indígenas, num estado cujo nome de Mato Grosso (do Sul) hoje conta, em seu Cone Sul, com uma vegetação nativa que não ultrapassa a média de 2% da cobertura original, além de um racismo endêmico e de uma extrema morosidade nos processos de demarcação, pela pressão do agronegócio.
Este encontra-se seja representado fortemente por políticos do estado, seja organizado em sindicatos, atuando com repressão privada armada e contando com suporte das forças policiais locais. Neste clima geral, veículos de informação como o Repórter Brasil, além do Conselho Indigenista Missionário relatam denúncias dos indígenas de ataques a tiros, espancamento e outras violências, físicas e psicológicas.
Registra-se, igualmente, que apenas há pouco mais de uma semana, outro caso, o da comunidade de Guyraroka, que também aguarda a demarcação de sua terra, resultou em um episódio de nível máximo de conflito, com reação da comunidade justamente ao uso do agrotóxico, a afetar a saúde de suas famílias.
Após mais estes ataques, que se juntam a uma série longa e constante de outros, a ABA, através da sua Comissão de Assuntos Indígenas e do Comitê de Laudos Antropológicos, vem manifestar profunda preocupação com a possibilidade que se avizinha de que os ditames constitucionais, que preveem a garantia, pelo Estado brasileiro, do direito à demarcação das terras de ocupação tradicional, sejam desrespeitados, ajudando a promover a continuidade da violência contra os indígenas.
Na prática, estes ditames significam que Executivo, Legislativo e Judiciário têm a tarefa constitucional de garantir aos povos indígenas o acesso aos seus territórios de uso e ocupação tradicional, e o direito à vida com dignidade neles, “segundo seus usos, costumes e tradições”, como estabelecido no Artigo 231 da Constituição. Por todo o exposto, com suas ações os Kaiowá demonstram que este preceito deve ser um imperativo instransponível, em termos legais, mas também morais, em nosso país.
Nesses termos, a ABA, ao tempo que demanda a profunda investigação dos atos de violência aqui apontados, e a tomada de providências correlatas pelas forças de segurança pública e de direitos humanos do Estado brasileiro, demanda igualmente à Presidência da República, ao Ministério dos Povos Indígenas, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal que, em seus papéis institucionais perante os Kaiowá, velem pela Constituição, garantindo integralmente a demarcação de suas terras tradicionalmente ocupadas.”
Indígena Vicente foi morto durante ataque em comunidade de Iguatemi (MS)
Comunidade de Takoha Pyelito Kue
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