
Obras de macrodrenagem da COP tentam dar fim a décadas de alagamentos em Belém
Belém é cheia de rios e canais. E boa parte da população vive em áreas baixas, as chamadas “baixadas”, regiões que ficam até quatro metros acima do nível do mar e são 40% da cidade.
Com o avanço das moradias sobre áreas naturalmente alagáveis e um dos piores índices de saneamento do país, a periferia da cidade enfrenta desafios históricos de drenagem.
É nessas áreas que as obras da COP 30 trazem esperança para quem sofre com alagamentos há décadas, mas pesquisadores ressaltam que esses projetos precisam de mais arborização. (leia mais abaixo)
Marinete Duarte da Silva, 68 anos, vive há mais de 40 anos em uma alameda no bairro do Mangueirão. O local recebe desde fevereiro de 2024 os serviços de macrodrenagem dos canais do Benguí e da Marambaia, uma das obras da COP 30, com orçamento de R$ 123 milhões.
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A aposentada diz que, antes das obras da COP, os alagamentos eram frequentes no bairro. Já destruíram os móveis da casa várias vezes e, ao ter de consertar os estragos causados pelas cheias, segundo ela, suas dores na coluna pioraram.
Marinete Duarte da Silva já teve que levantar o piso da casa várias vezes para lidar com os alagamentos constantes.
Reprodução/TV Liberal
Os canais do Benguí e da Marambaia são apenas alguns dos mais de 60 que cortam Belém, segundo o Anuário Estatístico do Município. Destes, pelo menos 15 recebem serviços de drenagem, saneamento e urbanização com recursos da COP, executados pela prefeitura ou governo do estado.
⬇️ BAIXO SANEAMENTO: Um dos 100 municípios mais populosos do Brasil, Belém tem um dos piores índices de saneamento básico. Está em 95º lugar entre as 100 maiores cidades do país no Ranking do Saneamento de 2025 do Instituto Trata Brasil. Caiu duas posições em relação ao ano anterior.
🌱 Faltam árvores
Locais de obras de drenagem em canais da COP 30, em Belém.
Marcus Passos e TV Liberal
Especialistas ouvidos pelo g1 criticam aspectos desses projetos de macrodrenagem. Para o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) José Rodrigues, as obras de macrodrenagem são necessárias em função do crescimento e ocupação urbana desordenada, em locais com baixa infraestrutura em Belém.
Porém, o coordenador do grupo de pesquisa em Estudos do Clima e Cartografia José Rodrigues alerta que essas obras alteram a dinâmica dos rios e causam desconforto térmico por conta da falta de árvores em alguns canais.
“Como se planeja uma macrodrenagem para uma bacia e não se leva em consideração um elemento essencial que é a vegetação? [Ainda mais] quando você traz uma COP para Belém, que vai discutir justamente a questão da preservação”, questiona.
A professora Roberta Rodrigues, integrante do projeto “Megaeventos e transformações urbanas: balanço crítico e perspectivas para a COP 30 em Belém” , afirma que a urbanização das áreas de baixadas é “equivocada” e que a falta de arborização é apenas uma das consequências.
“Não há arborização porque o projeto de urbanização desses locais é feito dentro de uma lógica que não dialoga com essas regiões, com suas características socioambientais”, afirma a professora.
Diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA, Roberta Rodrigues diz ainda que é um desafio muito grande repensar como a sociedade trata a drenagem urbana e urbanização das áreas periféricas. “Os projetos atuais priorizam o asfalto e tratam o rio como esgoto”.
O g1 solicitou um posicionamento ao Estado e à Prefeitura sobre a implantação de arborização nos canais da cidade, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.
🌊 Qual é a relação entre bacias, canais e os alagamentos em Belém?
O professor José Rodrigues explica que a grande quantidade de rios, bacias e canais em Belém é uma característica da cidade e que a capital paraense sempre teve uma relação direta com os rios.
De acordo com o Anuário de Belém, há pelo menos 14 bacias hidrográficas que abrangem 41 bairros. A maior delas, a do Una, com 36,64 km², agrupa o maior número de bairros.
Cinco dessas bacias urbanas, Mata Fome, Tamandaré, Murutucu, Una e Tucunduba, recebem obras da COP 30.
🔎 O pesquisador da UFPA explica a diferença entre bacias urbanas e canais:
Bacias urbanas: são áreas que passaram por intervenções humanas, como a retificação e canalização de rios e a retirada da vegetação original.
Canais: correspondem ao leito dos rios, o espaço por onde a água escoa. Nesse cenário, os canais funcionam como afluentes que integram uma bacia.
Por exemplo, o rio Tucunduba é o rio principal da Bacia do Tucunduba, e canais, como o da Timbó, do Mundurucus e da Gentil, são seus afluentes.
Segundo o pesquisador, o crescimento habitacional ao longo do tempo levou a população a ocupar áreas que são naturalmente alagáveis e que, por isso, há uma ocupação muito densa sobre as bacias e os canais de Belém.
José Rodrigues explica que as ocupações desordenadas, somadas a fatores como extensa rede hidrográfica (muitos canais e rios) e volume de chuva elevado durante todo o ano fazem com que Belém seja vulnerável a inundações e alagamentos.
Um plano da Secretaria Nacional de Periferias, lançado em junho, identificou 301 áreas de risco de inundação nas bacias que cortam Belém. O plano recomenda obras de micro e macrodrenagem, além da limpeza e canalização de canais.
Infográfico – Bacias urbanas de Belém
Arte/g1
🗣️ O que os moradores dizem sobre as obras de drenagem?
Ana Élida Cruz Ramos mora há 35 anos no Barreiro, na periferia de Belém. A região recebe atualmente as obras do Parque Urbano Igarapé São Joaquim.
O projeto de R$ 173 milhões, financiado pela Itaipu Binacional, dentro do pacote da COP e conduzido pela Prefeitura de Belém, envolve serviços de macro e microdrenagem ao longo de uma extensão de 5 km sobre o Igarapé São Joaquim.
Ana Ramos lembra que, quando chegou ao bairro, as casas eram de palafitas e que, por conta dos alagamentos na área, assim como Marinete, perdeu muitos móveis.
A moradora diz que participou de um movimento comunitário chamado “SS Macrodrenagem” para chamar a atenção do poder público para os problemas do bairro.
“A gente já sofreu vários alagamentos. Minha casa encheu de água, perdemos vários móveis, foi uma situação muito difícil para a gente que é morador. Porém, hoje a gente não tem mais esse problema […] Chove, mas o alagamento na nossa rua nunca mais”, afirma.
Ana Élida Cruz Ramos mora próximo ao canal São Joaquim, em Belém.
Reprodução/TV Liberal
A Prefeitura de Belém informou, por meio de nota, que atualmente vários canais recebem serviços de dragagem, limpeza e manutenção preventiva, para melhorar o escoamento das águas pluviais e reduzir pontos de alagamento, entre eles o São Joaquim.
Marinete Duarte da Silva também reconhece que a situação, em relação aos alagamentos e inundações, melhorou no bairro do Mangueirão após o início das obras de macrodrenagem dos canais do Benguí e da Marambaia.
Com financiamento de R$ 123 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a obra da COP executada pelo Governo do Pará realiza serviços de preparo e retificação de 1,9 km de canais, além de redes de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Para lidar com os alagamentos do passado, a aposentada lembra que precisou levantar os pisos da casa duas vezes, um processo que foi “muito difícil” e custoso. Toda essa situação a fez querer vender a casa, revela.
Marinete Duarte da Silva teme que, quando a COP terminar, as obras sejam paralisadas. “A gente torce que não aconteça, mas a gente pensa isso. […] Tomara que não pare, eu quero melhoria”, afirma.
Em nota, o governo do Pará informou que “desde 2019 realizou intervenções em 18 canais de Belém, com recursos de quase R$ 1,8 bilhão. Os serviços consistem em redes de abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem, retificação, pavimentação, aterramento de quintais e construção de pontes e passarelas.”
Já as obras de macrodrenagem dos conjuntos Parque União e Antônio Gueiros, no bairro do Tapanã, estão em ritmo bem mais lento. A execução da obra no Igarapé da bacia do Mata Fome começou em 2024, mas foi interrompida em 2025.
A moradora mostra várias ruas completamente alagadas no Parque União.
“Falam tanto de canal no centro enquanto a gente aqui, na periferia, estamos jogados às traças. Canal Mata Fome não existe mais, o que existe é mato e lixo”, denuncia.
Em nota, a Prefeitura afirmou que o projeto está aprovado, com recursos garantidos, e está em fase de formalização dos contratos para que as obras sejam reiniciadas.
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Quais as soluções para os alagamentos?
De acordo com o professor José Rodrigues, a cidade iniciou essas intervenções nas bacias há algumas décadas:
Década de 1960: Bacias do Reduto e da Tamandaré
Década de 1980: Bacia do Una
Década de 1990: Bacias do Tucunduba e da Estrada Nova
Porém, o pesquisador faz uma crítica às obras da COP que, ao mesmo tempo em que melhoram o saneamento, criam, segundo ele, “um outro problema, que é o desconforto térmico”.
Segundo José Rodrigues, a combinação de asfalto e concreto nesses canais, em uma cidade que recebe insolação o ano inteiro, faz com que a superfície das ruas libere energia que causa mudança significativa na temperatura.
➡️ CALOR ATÍPICO Em 2024, o Pará liderou o ranking nacional de municípios castigados pelo calor atípico, segundo levantamento exclusivo feito a pedido do g1. Das 111 cidades brasileiras do estudo, Melgaço e Belém concentraram os maiores períodos de estresse térmico no país.
Para o professor, a arborização é elemento primordial para ajudar a combater os alagamentos e problemas como o desconforto térmico.
“A árvore tem o papel justamente de reter a água, evitar que ela escoe com mais rapidez para os canais. Então, a árvore vai filtrar a água e equilibrar essa dinâmica”.
Por isso, o pesquisador da UFPA defende uma transformação cultural e política para valorizar e preservar a rede hidrográfica da cidade, com mudanças que passam por:
Renaturalização dos rios (desfazer o concreto e arborizar os canais)
Tratamento do esgoto e do lixo que caem diretamente nos canais
Criação de um comitê de bacias urbanas (para promover educação ambiente)
A professora Roberta Rodrigues da UFPA diz que as margens dos rios têm várias funções e podem ser apropriadas pela população de muitas formas e não apenas para o uso que valorize os carros.
“Plano Diretor pode reforçar as diretrizes e definir estratégias importantes de adequação do processo de urbanização às questões de adaptação climática e mitigação dos efeitos da crise do clima”, defende.
Esgoto caindo diretamente e sem tratamento na macrodrenagem dos canais do Benguí e da Marambaia em Belém.
Reprodução/TV Liberal
Canal do Mata Fome, que passa por obra, e a Bacia do Tucunduba, em áreas periféricas de Belém
Reprodução
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