Por que algumas pessoas sofrem reações mais graves ao metanol? A genética pode explicar


Sobe para 52 o número de casos de metanol em bebidas alcoólicas em SP
Casos de intoxicação por metanol levantam uma questão importante: por que, diante da mesma bebida adulterada, algumas pessoas evoluem rapidamente para cegueira e falência de órgãos, enquanto outras apresentam sintomas mais leves? A ciência aponta que a resposta pode estar na genética.
Como o corpo lida com o metanol
Quando ingerido, o metanol passa pelo fígado e sofre um processo de transformação. Duas enzimas, a álcool desidrogenase (ADH) e a aldeído desidrogenase (ALDH), convertem a substância em formaldeído e, depois, em ácido fórmico. São esses metabólitos, e não o metanol em si, os responsáveis pelos efeitos mais tóxicos.
Médico geneticista da Sociedade Brasileira de Genética Médica, Ciro Martinhago explica que nem todo organismo realiza esse processo da mesma maneira.
“Indivíduos que metabolizam o metanol mais lentamente acumulam níveis mais altos de ácido fórmico e sofrem danos mais intensos. Já quem metaboliza de forma mais rápida consegue eliminar parte da substância, apresentando um quadro menos severo.”
Genética e populações mais vulneráveis
Algumas variações genéticas são mais comuns em determinados grupos populacionais. Um exemplo é a deficiência de uma das variações da ALDH, a chamada ALDH2, mais frequente em pessoas de origem japonesa, chinesa e coreana.
Essa mutação dificulta o metabolismo do acetaldeído, subproduto do álcool comum (etanol), e causa sintomas imediatos após o consumo de bebida alcoólica, como rubor facial e palpitações.
Embora essa alteração tenha sido estudada principalmente no etanol, ela mostra como mutações em enzimas da mesma família podem aumentar também a vulnerabilidade ao metanol. Em pessoas com essa deficiência, o risco de acúmulo de ácido fórmico e de intoxicação mais grave tende a ser maior.

BIBLIOTECA DE FOTOS CIENTÍFICAS via BBC
Respostas individuais: nem toda reação é igual
Mesmo fora de grupos específicos, variações genéticas influenciam a velocidade de metabolização e a gravidade do quadro. É por isso que duas pessoas expostas à mesma bebida adulterada podem evoluir de formas completamente diferentes.
Segundo Martinhago, sinais fortes de reação ao álcool comum — como vermelhidão no rosto ou palpitações após beber — podem indicar variantes genéticas que dificultam o trabalho dessas enzimas.
“Esse histórico familiar de hipersensibilidade ao etanol pode sinalizar maior risco diante do metanol”, afirma.
Além da genética, fatores como idade, doenças pré-existentes e até a ingestão simultânea de etanol interferem. O álcool comum, por exemplo, compete com o metanol pelas mesmas enzimas, podendo retardar a formação de ácido fórmico. Isso significa que, em ambiente médico controlado, o etanol pode ser usado como antídoto contra o metanol.
Por que alguns ficam cegos e outros não
Em todas as pessoas, o ácido fórmico circula no organismo e pode atingir vários órgãos. O que varia é qual tecido sofre primeiro e com mais intensidade.
Segundo Martinhago, em alguns indivíduos, as variantes genéticas tornam o nervo óptico e a retina mais vulneráveis, o que aumenta o risco de cegueira precoce. Em outros, o fígado ou os rins são os mais afetados, levando à falência desses órgãos. Essa diferença de desfecho depende tanto da genética quanto da forma como cada organismo reage com inflamação.
Além disso, diferenças na resposta inflamatória também pesam: quem tem uma reação inflamatória mais intensa tende a sofrer danos maiores nos tecidos.
Luis Fernando Penna, gerente médico do Pronto Atendimento do Hospital Sírio-Libanês, explica que o quadro costuma se agravar entre 12 e 24 horas: “É quando o ácido fórmico bloqueia a produção de energia nas células. O nervo óptico sofre cedo, mas coração, pulmões e rins também já começam a ser exigidos pela acidose metabólica”.
Médica hematologista da Faculdade de Medicina do ABC e diretora da Clínica First, Indianara Brandão reforça:
“O fígado tenta nos defender, mas no caso do metanol ele fabrica o próprio veneno. O resultado é que órgãos de alta demanda energética, como os olhos, são atingidos primeiro, mas os rins e o cérebro também entram em risco de falência.”
O que já se sabe sobre os efeitos do metanol
Reportagens anteriores do g1 mostraram que o perigo do metanol está justamente nos seus metabólitos. Em até 24 horas após a ingestão, podem surgir sintomas como visão borrada, fotofobia e respiração acelerada. Se não houver tratamento rápido, em 48 horas o quadro pode evoluir para convulsões, coma e falência múltipla de órgãos.
É nesse ponto que a genética ajuda a entender por que a mesma bebida adulterada causa desfechos tão diferentes entre vítimas: em alguns, a perda de visão é precoce e irreversível; em outros, o dano maior atinge fígado, rins ou coração.
Mas em todos os casos, uma regra se mantém: o tempo é decisivo. Quanto mais cedo o paciente recebe antídotos e hemodiálise, maiores as chances de evitar sequelas graves.

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