Projeto “Curumim BJJ” leva a disciplina do jiu-jitsu para crianças indígenas em Brasília
arquivo pessoal
Quando o carro do mestre Daniel desponta na entrada da Aldeia Teko Haw, no Setor Noroeste de Brasília, as crianças já estão na expectativa de cair no tatame.
Elas correm até o veículo e ajudam o professor a descarregar os materiais e o lanche — geralmente sucos, sanduíches, geladinhos, frutas e salgados — que vão devorar após suar muito no treino que começa às 9h30 e dura cerca de duas horas.
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Os cerca de 50 alunos estão vestidos com quimonos. Alguns mais velhos e surrados, outros mais novos. Todos frutos de doações que Daniel e outros voluntários conseguiram arrecadar ao longo do tempo.
O local dos treinos fica no centro da aldeia. É um pátio coberto por telhas cinzas, sustentado por pilastras finas decoradas com grafismos indígenas. Três lados são cercados por muros baixos, e ao fundo, uma parede branca se estende do chão ao teto com o símbolo do projeto “Curumins BJJ” em destaque.
No tatame, a animação dá lugar à disciplina e movimentos coordenados.
Tudo ali é fruto da força de vontade e da solidariedade. O projeto de jiu-jitsu, iniciado em 2023, acontece duas vezes por mês e é mantido sem apoio fixo, custeado majoritariamente pelo mestre Daniel.
Cada ida à aldeia custa cerca de R$ 300, incluindo gasolina e o lanche. As inscrições em campeonatos também são bancadas por Daniel. Algumas crianças já competem e vencem.
Em um dos campeonatos, duas meninas de 9 anos que treinam juntas na aldeia chegaram à final. Por serem da mesma equipe, elas poderiam tirar “na sorte” quem levaria o ouro. Mas como lutam pouco, o professor optou por deixá-las lutar.
No pódio, a vencedora fez questão de entregar a medalha de ouro à colega que perdeu. Um gesto simples, mas cheio de significado.
Rebeca Guajajara e Liziane Guajajara no pódio junto com mestre Daniel depois de disputarem a medalha de ouro.
Arquivo pessoal.
Território indígena
A Aldeia Teko Haw, também conhecida como parte do Santuário dos Pajés, está localizada em uma das áreas mais valorizadas da capital federal.
O Setor Noroeste, bairro novo e planejado, tem o metro quadrado mais caro do DF, chegando a cerca de R$ 15 mil.
Esta área era originalmente uma região de cerrado preservado, considerada de interesse ambiental e cultural.
Ela foi ocupada por indígenas desde antes da construção de Brasília , mas com o avanço da cidade eles acabaram ficando com apenas uma parte do território que já ocuparam antes.
A comunidade enfrenta dificuldades para obter reconhecimento e sofre com a falta de infraestrutura básica — que contrasta com o bairro ao lado –, além de episódios de violência e tentativas de remoção.
Daniel se aproximou muitos das crianças da aldeia. Elas o aguardam ansiosamente para as aulas de jiu-jitsu e a confraternização depois dos treinos.
Arquivo pessoal.
Daniel Linco, educador físico e faixa preta, sempre teve o desejo de criar um projeto social. Ao conhecer a Aldeia Teko Haw, se envolveu com a causa indígena e viu ali a oportunidade de unir propósito e prática.
Há dois anos, ele ensina o jiu-jitsu brasileiro com todos os valores da arte marcial — disciplina, respeito, coragem e coletividade — e vê no esporte uma ferramenta de transformação, especialmente para quem cresce cercado por desafios.
“É uma missão que o jiu-jitsu me deu. Me sinto muito honrado, gratificado em conseguir colaborar no desenvolvimento dessas crianças para serem adultos melhores. E o mais importante: ajudar eles a nunca perderem as suas origens”, afirma o professor.
Impacto e legado
O projeto reúne crianças de diferentes etnias que vivem na Aldeia Teko Haw. A maioria é Guajajara, mas também participam Kariri-Xokó e Terena. Cada grupo carrega suas próprias tradições, línguas e formas de expressão, e todas se encontram no tatame
Entre os alunos do “Curumins BJJ” está Yemy Kael, de 11 anos. Antes do projeto, ele nunca havia se interessado por esportes. “Tentei botar no futebol, não deu. Ele não praticava nada, só brincadeira de criança”, conta o pai, Kaone de Souza Pires, técnico de rede óptica.
Quando o mestre Daniel chegou, Yemy deixou a timidez vencer e resistiu a participar. Mas ao ver outras crianças envolvidas, se interessou. Hoje, o pai conta que o menino é mais comunicativo, respeitoso e concentrado na escola.
Yemy Kael mostra com orgulho a medalha conquistada em um dos campeonatos que disputou.
Arquivo pessoal.
“O jiu-jitsu trouxe muito respeito, meu filho aprendeu a disciplina. O professor incentiva as crianças a seguir as regras, a socializar. Ele era mais caladão. Hoje ele se relaciona com todas as crianças do projeto. Eu incentivo a continuar no projeto porque, além do lado social, o jiu-jitsu também melhorou a saúde dele”, afirma Kaoni.
Outro participante é o estudante Deywyd Souza, de 15 anos. Ele observava Daniel ensinar as crianças e, em abril deste decidiu começar a treinar. Apesar da pouca experiência, ele já participou de duas competições, incluindo o Brasileiro Centro-Oeste, onde ficou em terceiro lugar.
Ao se aproximar do mestre, ele ganhou mais responsabilidades e é tido como um “monitor” do grupo, braço direito do mestre. Ele ajuda a montar os tatames, repassa os exercícios com os outros meninos e meninas e assume os treinos nos dias em que o professor não consegue ir.
“O jiu-jitsu mudou minha vida! Seja pelo conhecimento, pelas amizades, pela disciplina e por aprender a me defender. Eu já sou muito focado e o esporte melhorou isso em mim. Fico muito feliz de ajudar num projeto que tem esse impacto com as crianças. Um projeto feito com tanta dedicação pelo professor”, afirma Deywyd.
Intercâmbio cultural
Em algumas aulas, Daniel leva alunos da academia para auxiliá-lo a passar os golpes e os valores do Jiu-jitsu.
Depois das aulas, às vezes eles aproveitam para conhecer a aldeia e ter atividades para além dos treinos.
Nesses momentos, eles aprender mais sobre o dia a dia dos indígenas: as crianças indígenas mostram suas casas e objetos tradicionais, como as flechas, ensinam a tirar urucum e fazer pinturas.
A maioria dos pequenos fala português, é claro. Mas os mais novinhos também deixam escapar algumas frases em suas línguas nativas.
Futuro
Projeto “Curumim BJJ” leva a disciplina do jiu-jitsu para crianças indígenas em Brasília
Arquivo pessoal
Daniel está fazendo os trâmites burocráticos para abrir um instituto e conseguir arrecadar patrocínios, doações e participar de editais e fundos de financiamento públicos.
O que ele quer é conseguir juntar dinheiro suficiente para que as crianças tenham aula todas as semanas — o que agora é inviável.
Enquanto isso não acontece, ele segue com as aulas quinzenais e contando com o apoio que consegue. Na página oficial do “Curumins BJJ” (@projetocuruminsbjj), ele divulga as ações e consegue contato com doadores que simpatizam com o projeto.
Mas Daniel não está sozinho nessa luta para manter as aulas de jiu-jitsu na aldeia. Toda a comunidade está envolvida e alguns pensam em seguir o legado iniciado pelo mestre.
Deywyd é como um monitor e ajuda as crianças a executar os exercícios durante as aulas
Arquivo pessoal
“O que eu quero ver é essas crianças crescerem enquanto estou presente. Enquanto elas crescem, eu vou treinando mais para conseguir evoluir e mostrar para elas que é bom participar do esporte. Eu vou ser um adulto graduado e essas crianças de hoje vão estar adolescentes num nível mais elevado que eu. Quero ver esse projeto continuar por muito tempo para passar para outras crianças o que aprendi”, deseja Deywyd, que já é visto com admiração pelos pequenos.
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