
Rap fora do top 40 da Billboard após 35 anos expõe crise criativa e despolitização do rap
Pela primeira vez em 35 anos, nenhuma música de rap aparece entre as 40 mais ouvidas da Billboard Hot 100. Esse dado da última semana acendeu um alerta sobre o atual momento do gênero, que por décadas foi sinônimo de novação, rebeldia e posicionamento político.
Mas o que esse silêncio nas paradas diz sobre o rumo do hip hop? O número reflete uma queda de interesse pelo rap mainstream, que hoje vive um ciclo de repetição de fórmulas e esvaziamento criativo.
A sequência de 35 anos começou em 2 de fevereiro de 1990, com a faixa “Just a Friend”, do rapper Biz Markie. Já a última a figurar entre as 40 mais ouvidas foi “Luther”, de Kendrick Lamar e SZA.
Kendrick Lamar canta com SZA no show de intervalo do Super Bowl 2025
Cindy Ord/Getty Images North America/Getty Images via AFP
O dado vem acompanhado de críticas recorrentes dentro do próprio hip hop. Há quem aponte a falta de posicionamento político entre artistas do mainstream. Soma-se a isso o crescimento do conservadorismo dentro de um movimento que, historicamente, é progressista e contestador.
Esse raciocínio levanta uma discussão antiga: o quanto o hip hop ainda preserva suas raízes como movimento político e cultural?
1) O pop se apropriou do hip hop
O hip hop surgiu nos anos 1970 como uma resposta das comunidades periféricas à violência do Estado e à desigualdade racial. Era, e ainda é, uma cultura plural que uniu negros, latinos, asiáticos, mulheres e a comunidade LGBTQIA+ em torno de um mesmo grito: sobrevivência e expressão.
Nas últimas décadas, o gênero passou por um processo de popularização com a ascensão de vertentes como trap e drill. Essa expansão trouxe novos públicos, mas diluiu parte das raízes que mantinham o rap conectado à realidade das ruas.
Tornou-se comum ver nomes como Lil Wayne, Kendrick Lamar, Kanye West, Future e outros lado a lado com divas do pop, uma cena impensável nos anos 1990. De certa forma, o pop se apropriou do hip hop.
Taylor Swift e Future no clipe de ‘End Game’
Divulgação / redes sociais
Técnicas que nasceram no rap, como os samples (trechos de gravações reutilizados em novas obras), se espalharam por outros estilos. Algo parecido aconteceu com as baterias 808, popularizadas no trap, e que hoje estão no repertório de gente como Ariana Grande a Taylor Swift.
O discurso do rap perdeu um pouco de sua densidade. Às vezes, as letras soam mais como legendas de redes sociais do que como manifestações de uma comunidade. A desconexão entre fama e realidade talvez seja o primeiro sintoma da crise atual.
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2) O rap flerta com conservadores
Nascido como movimento periférico e politizado, o hip hop foi moldado pelas lentes de quem vive a desigualdade. Seus valores sempre se alinharam ao pensamento progressista.
Mas a ascensão social e financeira de muitos artistas criou uma nova contradição: a despolitização do movimento. Nos Estados Unidos e no Brasil, é cada vez mais comum ver rappers, funkeiros e trappers se aproximando de figuras e discursos conservadores.
Kanye West usa boné com frase símbolo da campanha de Trump durante encontro com presidente dos EUA no Salão Oval da Casa Branca
AP Photo/Evan Vucci
Um dos marcos dessa virada foi o apoio de Kanye West, em 2016, à candidatura de Donald Trump. O rapper ampliou sua retórica conservadora: criticou o movimento #MeToo, relativizou a escravidão e chegou a expressar admiração por Adolf Hitler.
Outros nomes seguiram o mesmo caminho. Ice Cube, membro do grupo N.W.A. e conhecido por suas críticas ao sistema e à violência policial, passou a colaborar com o governo Trump e a questionar vacinas na pandemia de Covid-19. Até Snoop Dogg criticou a cultura “woke” e se apresentou em eventos ligados ao atual governo americano.
Além do machismo estrutural, há também interesses pessoais: rappers como Lil Wayne e Kodak Black receberam perdões presidenciais de Trump em 2021.
O resultado é um paradoxo: artistas que nasceram como símbolos da resistência agora se aproximam dos mesmos discursos que antes combatiam.
3) O caso P. Diddy
Beyoncé e Jay-Z ao lado de P. Diddy em uma das festas promovidas pelo rapper
Reprodução/ Fantástico
Outro fator que ajuda a explicar a ausência do rap no topo das paradas é a queda de P. Diddy. O rapper, empresário e ícone dos anos 2000 foi acusado por sua ex-esposa Cassie Ventura e outras vítimas de abuso sexual, tráfico humano e violência.
Diddy foi inocentado de três acusações, mas condenado por transporte com fins de prostituição, envolvendo Cassie e outra mulher identificada apenas como “Jane”.
Diddy era sinônimo de sucesso e poder no rap. Descobriu artistas como Missy Elliott, Usher e The Notorious B.I.G., além de ter sido mentor de Justin Bieber.
Suas festas eram frequentadas por magnatas e celebridades, e seus negócios se expandiram para o álcool, a moda e a mídia. Mas as acusações — e suas conexões com nomes influentes como Jay-Z, abalaram a credibilidade do hip hop. E reacenderam um preconceito antigo: o da cultura hip hop associada à marginalidade.
Voltar às origens pode ser a solução?
Mais do que uma crise de popularidade, o que se observa é uma crise de identidade. O hip hop sempre foi mais do que música: é espelho, megafone e arquivo de lutas sociais. Repensar a cultura, portanto, passa por reconectar arte e política, sem abrir mão da evolução estética.