
Relatos de cura por meio da intercessão da benzedeira Dona Mariquinha Branca, que viveu em Sorocaba (SP), viraram tema de livro
Arquivo Pessoal
“Vejo-me no colo de minha mãe, nós estamos em frente a uma porta de uma sala com largo batente de madeira. Na escuridão desta sala eis que surge uma senhora com um xale e saia branca rodada. Essa distinta senhora pergunta a minha mãe o que a traz ali. Minha mãe lhe disse que eu tinha ‘medo’ de andar, que mal dava alguns passos e já caía. Eu deveria ter aproximadamente uns dois anos de idade. A senhora pede à minha mãe que me coloque em pé no chão da sala.”
A senhora descrita no trecho acima é Dona Mariquinha Branca, uma benzedeira que atendeu centenas de pessoas na região de Sorocaba (SP). O relato vem da memória da escritora Marisa Bueno, que reuniu histórias de curas e graças atribuídas à intercessão da religiosa.
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Marisa conta que sua mãe procurou Dona Mariquinha depois de notar que a filha tinha dificuldades para andar. A lembrança, vivida quando tinha apenas dois anos, ressurgiu muitos anos depois, durante um sonho.
“Lembro que ela pediu para minha mãe me colocar no chão. Ela fez um riscado no chão e pediu pra eu pular. Eu sei que eu pulei três vezes o riscado. Em seguida, ela disse para a minha mãe que eu não iria mais cair ao tentar andar. De fato, nunca mais caí”, conta.
Marisa Bueno posa ao lado da mãe. Quando criança, a escritora foi atendida por Dona Mariquinha Branca, após a mãe notar dificuldades na locomoção da filha
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Para produzir o livro, a escritora conversou com pessoas que foram atendidas por Dona Mariquinha. Entre os depoimentos coletados, um foi mais marcante para Marisa.
“É a história do Djalma Santos, que foi atendido pela Dona Mariquinha quando era bebê. Conversei com a esposa dele, que me contou que ele nasceu bastante debilitado e a mãe só esperava pela morte. Até que a avó do Djalma chega em casa, vê o bebê naquela situação, e diz que ia levá-lo até a benzedeira. A família, muito humilde, levou o bebê numa caixa de sapatos e, chegando lá, Dona Mariquinha pingou algumas gotas de uma ‘garrafada’ na boca da criança, que cresceu saudável”, relata Marisa.
A “garrafada” mencionada pela escritora era uma bebida feita com ervas e, em alguns casos, com vinho branco. Era considerada um remédio popular, utilizado para tratar diferentes tipos de enfermidades.
“Os remédios eram preparados seguindo as orientações de Dona Mariquinha”, relata Marisa.
A casa que acolhia crianças
A casa onde Dona Mariquinha atendia crianças, jovens e adultos em busca de cura ficava na Rua Purcino de Campos, na antiga Vila Santa Maria, uma vila operária da fábrica de tecidos de mesmo nome nas proximidades da Vila Hortência, em Sorocaba. Seu nome de batismo era Maria Margarida de Barros Soares, mas foi eternizada como Mariquinha Branca. A data exata de seu nascimento é incerta: a certidão de casamento indica 1890, embora a família acredite que ela tenha nascido antes. Mariquinha faleceu em 1985, vítima de câncer.
“Achávamos que minha avó era mais antiga, pelas histórias que ela contava”, comenta a neta Dagma Aparecida de Castro.
Dona Mariquinha Branca morava e atendia na casa branca à esquerda, na antiga Vila Santa Maria
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A casa não era destinada apenas aos atendimentos religiosos. Segundo Dagma, a religiosa também acolheu e criou mais de 60 crianças, que eram levadas pelas mães para receber benzimentos e acabavam ficando sob os cuidados da idosa.
“As mães iam lá e levavam a criança pra benzer. Aí a mãe falava que precisava ir resolver algo e voltava buscar o filho, mas não voltava. Aí minha avó acolhia, não tinha outro jeito. Eu sempre via a casa da minha avó cheia de criançada. Era normal. A maioria dessas crianças saiu de lá casada”, relembra Dagma.
A generosidade de acolher crianças, ainda que a família vivesse uma vida humilde, foi também um dos motivos que inspirou Marisa a escrever sobre a benzedeira.
“Ela educou muitas dessas crianças para a vida, muitas crianças ficaram lá até os 18, 19, 20 anos, casaram e foram embora. Ela também era o amparo das pessoas que viviam nas ruas, fazia comida para entregar para essas pessoas. Ela trabalhava das 7h até as 22h. Vivia das novenas, sempre terminava uma novena, começava outra em benefício das pessoas. Ela produzia remédios, unguentos, mas também acudia e alentava as pessoas em matéria de conselho”, aponta.
Dona Mariquinha acolheu mais de 60 crianças em sua casa, segundo a família. Muitos saíram de lá adultos
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Quando Dona Mariquinha morreu, Dagma tinha 32 anos. Apesar de não ter morado com a avó, as visitas a casa da benzedeira eram praticamente diárias.
“Eu acho que o povo de Sorocaba não sabia a joia rara que tinha nas mãos. Para mim, era apenas a minha avó. Uma avó rígida, brava, mas muito brincalhona também, adorava fazer brincadeiras de susto com os netos. Eu não enxergava ela como uma ‘super mulher’, mas tinha a sensação de que ela era imortal. Eu falava pra minha mãe, ‘eu acho que a avó nunca vai morrer’.”
Mariquinha carregando uma de suas bisnetas
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Na falta de médicos, benzedeiros
“Quando eu era pequena, tinha rinite bem forte e meu avô cismou que precisava me benzer pra passar. Nós fomos para Itapetininga e ele me levou em um sítio de uma senhorinha que benzia. Ela fez algumas orações e passou um raminho em mim e no meu rosto. Depois disso, melhorou muito”, relata Ana Carolina Dias.
“Quando eu era pequena, estava demorando pra começar a falar. Aí me levaram em uma benzedeira e colocaram um pintinho na minha boca, fizeram uma reza e eu comecei a falar”, conta Letícia Vale.
Esses e muitos outros relatos mostram como o benzimento faz parte da vida cotidiana, principalmente na infância. Embora não existam números exatos sobre quantos benzedeiros já viveram em Sorocaba, o pesquisador José Rubens Incao afirma que, décadas atrás, era comum encontrar ao menos uma benzedeira em cada bairro, às vezes, em cada rua. Em muitas cidades, especialmente nas menores, o acesso à medicina tradicional era limitado. Nesses lugares, recorrer ao benzimento muitas vezes representava a única alternativa de cura.
“Era o que havia à mão. Havia poucos médicos, a distância era grande e o custo, alto. Mas não era só por isso, o benzimento também representava uma tradição, uma confiança construída na fé. Dona Mariquinha Branca curou e ajudou muita gente e essa crença permanece até hoje.”
O painel de estatísticas do Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) apresenta as principais causas de morte em Sorocaba no ano de 1910. Na categoria “moléstias generalizadas”, a tuberculose pulmonar aparece como a principal causa de óbitos, com 50 registros. Em seguida, vem o sarampo, responsável por 40 mortes, e, logo depois, a gripe, que provocou sete óbitos naquele ano.
Pesquisador José Rubens Incao explica que em algumas cidades a busca pela cura por meio do benzimento era a única alternativa devido à falta de médicos
Gui Urban/Divulgação
Tradição que atravessa religiões
Na religiosidade popular, o benzimento é um ritual voltado à cura e ao bem-estar, com rezas e gestos específicos para cada tipo de mal. A prática é milenar, com origem provável na Europa, e no Brasil ganhou influências indígenas, com uso de ervas nativas, cantos e defumações, e africanas, trazidas pelos povos escravizados.
Apesar da diversidade de influências, o benzimento não está ligado a uma única religião. Dona Mariquinha, por exemplo, se considerava católica, segundo a neta.
“Ela dizia: ‘eu sou católica, apostólica, romana’. Mas ela tinha essa espiritualidade. A mãe, às vezes, não sabia porque a criança estava com alguma enfermidade e ela sabia identificar a causa. Mas acho que ela não entendia muito de onde vinha isso”, completa.
Dona Mariquinha com filhos e netos na casa onde morava, na antiga Vila Santa Maria, em Sorocaba (SP)
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Já a benzedeira Viviane Tavares Ferraz, de 50 anos, atua dentro da umbanda.
“Minha avó era umbandista, e minha mãe a acompanhava. Depois que meu avô se converteu ao evangelismo, ela deixou de praticar. Mas, aos 85 anos, já com sinais de demência, ela me chamou e disse que a missão da umbanda seria minha”, conta Viviane.
Ela aceitou o chamado e fundou seu próprio terreiro.
“Minha avó nos ensinava escondido: curar machucado, quebranto, bucho virado… Dizia que certas doenças só passavam com reza. Hoje, há 20 anos atuo como benzedeira e mantenho um projeto com crianças, ensinando os fundamentos do Sagrado e a vivência prática da religião.”
Viviane explica que os pedidos de ajuda são de diversas naturezas e não envolvem apenas problemas de saúde.
“Trabalhamos com questões de trabalho, equilíbrio e aprendizado das próprias pessoas que buscam. Existe sim muito preconceito, as pessoas associam esses trabalhos à maldade. Quando na verdade é manipulação de energia e que deve ser feito sempre com respeito, por quem tem conhecimento. As redes sociais banalizam demais a nossa prática e com isso se perde a importância da religião e do fundamento em si”, analisa Viviane.
Viviane Tavares Ferraz, de 50 anos, é benzedeira e atua dentro da umbanda
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E como são feitos os benzimentos?
“Existem várias formas de benzimento”, explica José Rubens Incao, que também foi atendido por benzedeiras na infância.
“Pode ser por meio de rezas, orações, uso de ervas, seja defumando, queimando, preparando chás ou fazendo bentinhos, que são pequenos saquinhos com ervas pendurados no pescoço ou deixados ao lado da pessoa. A água também é um elemento muito importante nos rituais. Lembro que, quando eu era criança, a benzedeira me fazia ficar de pé no batente da porta. Com um instrumento, ela marcava o batente e dizia que, quando eu crescesse e ultrapassasse aquela marca ‘mágica’, a cura chegaria.”
Segundo o pesquisador, o conhecimento de um benzedeiro nem sempre é passado a um descendente direto e quem aceita dar continuidade ao legado precisa compreender o compromisso.
“Os benzedeiros têm um termo chamado ‘fado’, como se fosse uma missão. Às vezes, o benzedeiro escolhe alguém sem laços de sangue e diz: ‘vou te passar minhas rezas e meu trabalho’. Quem aceita, muda de vida e passa a atender a qualquer hora, sempre sem cobrar nada. A prática diária que vai fomentando esse conhecimento. A partir do momento que você assume esse fado, você tem que ter uma postura.”
“A vida desta benemérita senhora Maria Margarida de Barros, a Dona Mariquinha, está na história de muitas pessoas que foram benzidas e curadas por ela. Histórias que possivelmente ainda não foram contadas, mas que constam no misticismo e crendices de Sorocaba, cidade que ainda tem, com certeza, a tradição de muitas benzedeiras e benzedeiros”, declara a escritora.
Na imagem, Dona Mariquinha está de blusa preta, junto de filhos e netos. No canto direito da foto, usando vestido rodado de pregas e botões, está Vilma, uma das filhas adotivas da benzedeira
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